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Julio Pompeu: ‘Cafajestes’

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Julio Pompeu (*) –

Há duas semanas tento escrever sobre o projeto de lei do estupro. Não consegui. Pensei em escrever uma história sobre violência sexual. Bolei uma personagem a ser estuprada e outro, o estuprador. Pensei até em alguns detalhes que dariam alguma humanidade a estas pessoas de mentira. Só para ficar mais evidente a brutalidade do ato. Esta foi a parte fácil.

A impossível foi a história. Não pelo enredo, para o qual pensei em violência doméstica. Não faltaram histórias assim para servirem de inspiração. Ainda há pouco, dedilhando o celular, topei com mais uma para me estragar o almoço. Fiquei só na manchete. Não gosto de ler sobre estas coisas. Gosto menos ainda de escrever. Para o texto ter a força de indignar, seria preciso descrever um estupro. Não consegui. Não consigo.

Costumo escrever aqui histórias – que são só uma ideia com começo, meio e fim – e palavras. Palavras são os tijolos com os quais se constrói um texto. Mas diferente de tijolos, as palavras não são iguais. Há as grandes, as pequenas, as bonitas, as engraçadas, as feias. Há os palavrões e as palavrinhas. Encaixa-se uma na outra como quem monta um mosaico. Cada pedaço vazio da história precisa da palavra certa. Do caco que vai encaixar-se perfeitamente naquele espaço. Gasto mais tempo escolhendo palavras do que inventando histórias.

Mas para falar de estupro, que palavras caberiam? É um crime horroroso, mas ao mesmo tempo dizer que é horroroso parece pouco. É palavra amena demais para descrever o inferno da violência sexual. E o mesmo acontece com outras. Hediondo, por exemplo, além de parecer pouco, soa como palavra de gente pedante. Carregar nos adjetivos poderia ajudar, mas texto com adjetivos demais fica pobre. Texto precisa de substância, a qualidade da substância deve vir na cabeça de quem lê. Substantivo deveria ser coisa do escritor e adjetivo do leitor. Mas sejam substantivos, sejam adjetivos, todos me pareceram aquém do horror a se descrever.

Há ainda o problema do desgaste das palavras. Usa-se tanto palavras fortes para cenas de sentimentos fracos que elas terminam desgastadas. Banalizadas na banalização de sentimentos. Este país cheio de violência, pobreza e fome já chamou atraso de avião de caos, perda de joias de tristeza imensa e derrota em jogo de futebol de acontecimento terrível. Que palavras usar para um estupro então? E para a gente que propõe que uma criança estuprada tenha que escolher entre arriscar-se a morrer ou ser presa? E quando dizem que o tal projeto é só para “testar o presidente”, deixando claro que seus joguinhos pessoais de conquista de poder e dinheiro valem mais do que a vida de crianças e mulheres deste país?

Onde o poder político claramente não respeita gente, que pode um professor metido a escritor semanal, cujo único poder que tem é o das palavras, que consegue encaixar umas depois das outras? Que posso quando não encontro palavras?

Sobrou-me só a luta com as palavras que consigo encaixar. Palavras que são, às vezes, violentadas pela nossa elite política do mesmo modo que frequentemente violentam a lógica, a verdade, o decoro, a vergonha e a compaixão.

Dizem que a ideia da lei veio da bancada evangélica. Palavras incorretas. Deveria se chamar Bancada Cafajeste. A proposta Vossas Cafajestências não tem nada de verdadeiramente religioso, mas tem muito de cafajestagem na luta pelo poder às custas de vidas alheias, no machismo que só consegue ver mulher como subgente, no desavergonhado uso da fé. Tudo coisa da mais cristalina cafajestagem assassina.

Ah! Como falta a este país políticos dignos e religiosos que acreditem mais no sagrado do que no dinheiro! Como faltam palavras duras como a dor de uma criança violentada pelo machismo, pela fé sem amor e pelo poder sem escrúpulos…

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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