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O que estamos fazendo aqui no Planeta Terra? Ensaio crítico sobre o espetáculo ‘Tamboril Estelar’, por Rebecca Loise

“Tamboril Estelar” é um experimento cênico-artístico que responde com arte, inventividade, criatividade e posicionamento ético sobre os sentimentos que atravessam os seres humanos que vivem o avanço do século XXI

O Planeta Terra nos dá sinais de catástrofes e colapsos desde que os primeiros humanos surgiram, de acordo com os registros e os achados que compõem a história que até aqui nos narram – e sempre é tempo de questionar as fontes de conhecimento –, há 13 milhões de anos. Da ancestralidade do macaco australopithecus, considerado o primeiro hominídeo, evoluíram os homo habilis.  Até que chegássemos a nos entender homo sapiens sapiens, a espécie que conquistou os cinco continentes através do domínio do fogo, da linguagem e da construção de instrumentos de caça e de sobrevivência, o processo evolutivo também registra os gêneros homo erectus e homo neanderthalensis. Este recorte temático importa para sensibilizar a leitora ou o leitor para a seguinte reflexão: o que até agora podemos ver da evolução da vida humana dentro do grande globo azul a qual pertencemos? Ou melhor, o que estamos fazendo aqui no Planeta Terra?

Neste outubro de 2021, para situá-los em um cenário recente, várias cidades do Estado do Mato Grosso do Sul sofreram as consequências ambientais de uma tempestade de areia com ventos que alcançaram quase 100 km/h, chuvas intensas e rápidas, com a presença de raios e nuvens de poeira. Tivemos quedas de árvores, de postes de energia elétrica e corte no fornecimento de luz, água, internet e sinal de celular. Sem energia, sem água, sem internet, sem meio de comunicação, como vive o homem contemporâneo?

Numa breve retrospectiva que ainda explica o tempo de luto no qual estamos imersos, há menos de dois anos – precisamente no último dia do ano 2019 – a China notificou à Organização Mundial da Saúde (OMS) os primeiros casos de um novo coronavírus. Três meses depois desta data, a OMS declarou oficialmente que vivíamos um cenário de pandemia da covid-19 que continua a afetar a saúde global – unindo-se ao histórico dos cinco grandes surtos pandêmicos: a peste bubônica, a peste da varíola, a da cólera, a da gripe espanhola e a da gripe suína (H1N1). É preciso lembrar que, embora estejamos acompanhando o avanço da vacinação e a queda do número de mortes por conta do novo coronavírus, estamos ainda colapsados, vivendo em estado de pandemia. As chamadas três esferas da sustentabilidade – social, econômica e ambiental –, gritam por revisões e novas formas de pensar a produção, considerada a grande causa da degradação do Planeta Terra desde a Revolução Industrial.

O estado de catástrofe e colapso global nos leva aos sentimentos avassaladores de medo, de desamparo e ao afeto da angústia: temas caríssimos aos seres humanos que conseguem encontrar condições para – além de sobreviver – refletir sobre sua existência no mundo. No ensaio “Sobre a transitoriedade” (1916 [1915]), Sigmund Freud, o médico neurologista vienense que inaugura a teoria psicanalítica que investiga o inconsciente e cria um método para tratar o sofrimento psíquico na virada do século XIX para o XX, convoca-nos a refletir sobre o tempo a partir de uma reflexão que teve durante uma caminhada que fez na companhia de um amigo e de um jovem poeta. Freud defende, neste texto, que “o valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo”. Na época do ensaio, o cenário era o da I Guerra Mundial. Ele propõe que o processo do luto, ligado às perdas e à destruição causadas pela guerra, ao ser elaborado se levado a um tratamento, revela a descoberta da fragilidade de toda civilização e a possibilidade de reconstrução da vida por novos investimentos “libidinais” – conceito psicanalítico ligado ao desejo e ao movimento pulsional de cada sujeito em sua relação com o mundo através de sua atividade – seja no vínculo familiar, afetivo ou no vínculo que está relacionado ao trabalho ou à arte de produzir algo. Escreve ele: “Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.” O que diria Freud hoje, neste momento em que todos os cantos deste grande globo azul nos sinalizam que a espécie humana enfrenta perigos que nos fazem questionar, sem vislumbre de respostas, neste quadro de luto infinito: por quanto tempo sobreviveremos às mudanças climáticas? Por quanto tempo sobreviveremos à guerra nuclear? Por quanto tempo sobreviveremos a esta e a outras possíveis pandemias? Por quanto tempo sobreviveremos aos governos fascistas? Por quanto tempo sobreviveremos à fome e aos rumores de que o planeta Terra será atingido por um asteroide de proporção enorme?

O espetáculo “Tamboril Estelar”, que estreia nesta quinta-feira dia 18 no Espaço Sucata Cultural, com duas apresentações por noite, às 20h00 e às 21h15, responde com arte, inventividade, criatividade e com um posicionamento ético que defende a vida, a sustentabilidade e a consciência ecológica aos questionamentos existenciais que nos levam ao desamparo e à angústia em tempos de luto – nos quais estamos mergulhados com mais intensidade desde a marca temporal da última e presente pandemia. A dramaturgia textual é assinada pelo artista e dramaturgo Tig Vieira, a atuação é da atriz, artesã e arte-educadora Nattalia Mazarim, que recentemente estreou o filme “Madalena”, com exibição na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e a direção é da atriz, cenógrafa e figurinista Áurea Eu.

O espetáculo inicia com a personagem Katarina às voltas de si mesma, sentada num caixote monocromático em posição curvada. A personagem aparece vestida inteiramente com seu traje espacial e rodeada de lixos descartáveis de todos os tipos numa estética performática onde tudo tem a mesma cor, trazendo-nos uma sensação estranha de clausura, isolamento e confusão mental. Katarina está perdida no espaço sideral e flutua em pleno vazio, no qual “os conceitos perdem um pouco de sentido” e o tempo serve apenas para refletir sobre aspectos existenciais.

A personagem anuncia seu ato anti-heroico nas primeiras falas. Ela apresenta seu “necessário” trabalho dentro do grande globo azul em colapso: ela é um astronauta que é um faxineiro com treinamento e licença para estar ali. O trabalho da personagem é o de guardar coisas que alguém jogou fora e foram esquecidas. Perguntas como “vocês conhecem destruição?,  “vocês conhecem o fim real das coisas?” são feitas enquanto a personagem dedica-se a imaginar a história de todas as coisas que leva para o “seu” vazio. Aqui é relevante sinalizar que os lixos descartáveis em cena parecem apontar para a necessidade urgente de refletirmos sobre nossa consciência ecológica e nossa responsabilidade dentro da temática da sustentabilidade. A figurinista e cenógrafa do espetáculo Aúrea Eu, que é idealizadora do Projeto Desordem LAB, através do seu laboratório de pesquisas e práticas artísticas sustentáveis, propõe em seus trabalhos construções artístico-críticas que dialogam com sua forma de pensar o ser, o estar e o conviver em sociedade, enfatizando a importância de pensarmos o quanto as ações individuais impactam o ecossistema.

A personagem Katarina, no corpo da atriz da Nattalia, entrega-se a uma confusão mental enquanto narra a história de uma boneca com vozes que se diferenciam em intensidade, altura, inflexão, ressonância, dicção e na interpretação dos fatos. Nessa narrativa dissociada, a personagem revela que “nós podemos escolher tudo, menos o tipo de destruição que nos atingirá.”

Vivendo uma “estranheza familiar”, que remete ao conceito freudiano de unheimlich, a personagem traz em cena um grande paradoxo existencial que é estrutural a todo sujeito: para que evitemos nosso contato com a finitude das relações e das coisas que fazem parte de nosso mundo interior e exterior, evitamos – cada um à sua maneira – todo e qualquer sinal de angústia que aponta para a solidão de nosso não-ser e para o retorno do que foi recalcado, isto é, do retorno daquilo que está inconsciente. Para que o sujeito se desvie da angústia de lidar com a falta de onde seu desejo emerge, ele coloca-se em movimento para fazer laço social – seja no ato de criar arte, de governar, de fazer ciência, de relacionar-se com seus pares, de se pôr a trabalhar ou de integrar-se a determinados grupos. No entanto, como salienta Jacques Lacan, psicanalista que se dedicou a fazer um retorno à obra de Freud para continuar a transmissão da teoria e da prática psicanalítica, a angústia aparece como o afeto que não engana. Não engana em relação a quê? Pois bem, o afeto que não engana sobre a angústia que nos habita. Atualmente, com o avanço sobre a temática da saúde  mental nas mídias, no ensino e no cuidado à saúde, fala-se mais sobre sintomas de ordem psíquica ou os chamados “transtornos psíquicos e de personalidade”, de acordo com a nosografia psiquiátrica. Para exemplificar, os chamados “ataques de pânico”, “comportamentos obsessivos e compulsivos”, “doenças psicossomáticas”, “crises de ansiedade”, “compulsão alimentar”, “compulsão sexual”, “compulsão à jogos ou ao uso das redes sociais”, “uso e abuso de álcool e/ou outras drogas”, “problemas de ordem sexual” são todos sintomas e manifestações que apontam para a angústia ou para o “mal-estar” de existir do sujeito no mundo. Atos de cortar-se ou machucar-se, tentativas de suicídio e ingestão excessiva de medicamentos também são considerados atos para dar conta de sentimentos angustiantes e à falta de sentido em relação à vida e à própria existência.

Durante a peça, a personagem claramente nos diz que o “vazio é um lugar muito frio”. Ou seja, o vazio aponta para um lugar sem tanto calor humano, escancara a nossa solitude e nos coloca diante de nossas escolhas singulares, vontades e desejos mais secretos. Esse lugar “vazio” nos convoca e nos impele a criar algo que nos faça pertencidos a nós mesmos. Como pertencer a si mesmo? O que somos? O que queremos? O que é o amor? O que é a morte? E, afinal, o que estamos fazendo aqui no Planeta Terra? Eis as grandes questões da humanidade que enchem as produções de livros para as bibliotecas, sebos e livrarias, as produções de filmes para os cinemas e para a televisão, os conteúdos das redes sociais e da internet, as produções de arte para as bienais, os museus e as ruas da cidades, as produções de conhecimento nas universidades e nos laboratórios, as produções de sentido dos pacientes e analisantes em consultórios de psicologia, de psicanálise e os consultório médicos, as produções de fiéis nas igrejas e centros espíritas e, claro, as produções de espetáculos de dança, performance e teatro nos espaços de cultura e da cidade. São as perguntas que nos movem e que nos colocam a criar, a nos relacionar e a existir.

Numa dança em volta de um dos únicos objetos cênicos com que se relaciona em cena – um caixote monocromático em branco – Katarina corre em torno de si mesma, perturbada com suas vozes internas, gritando sobre o seu desejo radical de sentir que pode escolher o seu próprio destino, ou melhor, de sentir que pode encontrar o seu próprio fim.

Katarina, enquanto se movimenta de maneira robótica e com alguns espasmos, nos avisa que ela também é “Tamboril”. Explica que esse nome foi dado por ela mesma. Tamboril, diz ela, “é um peixe achatado, com a cara toda pra cima da cabeça, (…) não se importa com a sujeira, porque seu rosto está em outra direção”. Num estado dissociativo, Tamboril também é um “homem de terno” que resolveu dar fim à sua vida na ânsia de um afeto “impossível”.

Ao longo do espetáculo, no trançar dessas vozes distintas que indicam um surto dissociativo da personagem, entre Katarina, Tamboril e “o homem de terno”, a mensagem aparece entre as metáforas: para aplacar o medo da solidão, a personagem busca acabar com tudo de maneira trágica. Lembremos aqui: a angústia nunca engana, afinal. E a arte está aí, para que aqueçamos nosso(s) vazio(s) e para que possamos criar sentido(s) diante da falta de uma resposta que acalme nossas inquietações.

Este ensaio, à convite da produção de “Tamboril Estelar” e que tenho a honra de assinar, é um estímulo a mais para que todos recorram à arte teatral – seguindo os protocolos de segurança e cuidado contra a covid-19 – para nomear os sentimentos que nos atravessam em nossa trajetória vital, tão efêmera; para experienciar a estética transformadora que esses artistas construíram através da montagem do espetáculo; e para se sentirem mais vivos em meio a tantos lutos. Evoé! Evoquemos Dionísio neste Planeta Terra que ainda está a girar e que ainda nos põe a existir, demasiadamente humanos.

Rebecca Loise é psicanalista, supervisora clínica, atriz, artista do corpo e escritora. Seu primeiro livro é intitulado “Engordei o sol noturno”, pela Editora Urutau. O livro está em pré-venda pelo link: https://benfeitoria.com/engordei

Espetáculo “Tamboril Estelar”

SERVIÇO

Apresentações dias 18, 19 e 20 de novembro de 2021

Duas sessões por noite: às 20h00 e às 21h15

Ingressos à venda no local e pelo site: https://www.bilheteriadigital.com/tamboril-estelar-18-de-novembro

Valores dos ingressos: R$ 10,00 e R$ 20,00

Local: Sucata Cultural –  R. Onófre Pereira de Matos, 815 – Centro, Dourados – MS

FICHA TÉCNICA

Direção: Áurea Eu

Atuação: Natallia Mazarim

Dramaturgia: Tig Vieira

PRODUÇÃO:

Produtora: Desordem LAB

Produção executiva e administrativa: Natallia Mazarim

MÚSICA:

Composição: SINØ

Trilha e efeitos sonoros: Áurea Eu, Desordem LAB

Operação de som: Guilherme Godoy

FIGURINO:

Design de figurino: Áurea Eu

Assistente de modelagem corte e costura: Cida Moreira

Produção de figurino: Desordem LAB

CENÁRIO:

Design cenográfico: Áurea Eu

Iluminação e operação de luz: Rodrigo Bento

Artesania de execução de banco de cena: Ed Alvarenga

Artesania de confecção de Boneco de cena: Lindalva Torres

ASSISTÊNCIA, SUPORTE DE CENA, E ACESSIBILIDADE:

Design de movimento de cena: Áurea Eu

Preparação corporal: Denise Ortiz

Alongamento de equipe com hatha vinyasa yoga: Mariana Rodrigues Zamprogna

Assistência de produção de montagem: Júnior de Oliveira

Contrarregragem: Malu Reis

Interprete de Libras: Danielle Vergutz

MÍDIA E VEICULAÇÃO DIGITAL:

Direção de arte: Áurea Eu

Direção criativa: Desordem LAB

Design gráfico: Tig Vieira

Produção executiva digital: Natallia Mazarim

Fotografia, registros de cena e bastidores: Desordem LAB

Agradecimentos:

Rebecca Loise

Júnia Cristina Pereira

APOIO:

SEMC, AGECOLD, CASA DAS CORES, CASULO

PARCERIA:

Sucata Cultural

Financiado pelo fundo de investimentos culturais do MS

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