O Brasil, todos sabemos, é um país miscigenado. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2019, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 42,7% dos brasileiros se declaram brancos, 46,8% pardos, 9,4% pretos e 1,1% como amarelos ou indígenas. Essa distribuição, no entanto, não se reflete em todas as esferas da sociedade brasileira. Ainda é raro vermos negros em cargos de gestão e posições de destaque.
O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, é uma ocasião para refletir sobre o longo caminho que ainda precisamos percorrer em direção a uma sociedade mais igualitária e inclusiva. Para isso, convidamos quatro profissionais negros de diferentes áreas e posições do Instituto e da Fundação Butantan para contar um pouco sobre suas histórias e o que cada um de nós pode fazer para ajudar a tornar o mundo mais justo para todos.
Eulália Cristina Rodrigues, 49 anos
Oficial administrativa do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas
Quem é: O primeiro emprego de Eulália foi em 1988 no Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal Fundação Prefeito Faria Lima (CEPAM), aqui mesmo, no campus da USP. Ela começou como auxiliar de serviços gerais. Tinha só 14 anos. Até que um dia ela soube que precisavam de alguém para auxiliar na contagem e distribuição de holerites. “Perguntaram se eu sabia o que fazer, eu disse que sim, que eu estudava e que se quisessem eu podia ajudar. Nessa de me oferecer para ajudar eu saí da parte da limpeza e fui para o RH”, conta. Com 16 anos, Eulália migrou para essa área, e vem trabalhando nela desde então. Em 1992, prestou concurso para a Secretaria de Saúde e, aprovada, veio trabalhar no Butantan porque era mais perto de onde estudava. Já são quase 30 anos de Butantan – 28 deles no RH, até que, em 2019, foi convidada a exercer suas funções no Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas – e três graduações: Enfermagem (que ela nunca exerceu), Recursos Humanos e Processos Gerenciais, além da pós-graduação em Saúde Pública.
Ser negra no mercado de trabalho: Eulália lembra como eram as coisas no início da carreira. “As pessoas acham que trabalhar como auxiliar de serviços gerais, limpando, que essa é a nossa obrigação por sermos negros. É mais fácil lidar com um negro que faz serviço de faxina do que ver um branco na mesma função.” No Butantan, ela nunca sofreu preconceito, mas lá fora a situação é outra. Como o marido de Eulália é branco, ela já foi confundida com babá de uma de suas três filhas e teve que provar, na delegacia de polícia, que era mãe dela.
O que podemos fazer por um ambiente mais inclusivo: Olhar mais para as pessoas negras na hora de preencher cargos de gestão. Se há uma pessoa branca e uma negra com a mesma qualificação e experiência na disputa por uma posição, a cor não pode ser um impeditivo. “A gente vê muitos cargos de gestão que são ocupados por brancos. Há exemplos aqui no instituto, pois é a visão que temos trabalhando aqui. O negro, querendo ou não, é o segundo plano. Sempre foi o segundo plano.” Para Eulália, a sociedade precisa acelerar o processo para extinguir o preconceito não só no dito das palavras, mas sim nas atitudes em geral.
Douglas Gonçalves de Macedo, 38 anos
Gerente de produção da vacina Influenza
Quem é: A rotina de Douglas é intensa. Ele gerencia uma fábrica com 340 colaboradores que trabalha todos os dias de setembro a maio, sem parar, com turnos de 12 horas, para entregar um produto complexo em um prazo curto de tempo. Farmacêutico de profissão, ele sempre trabalhou na indústria farmacêutica e, mais especificamente, na garantia da qualidade. Quando chegou no Butantan, há oito anos, foi contratado como analista sênior de qualidade e, até o ano passado, era coordenador da garantia da qualidade. “Quando startou o projeto do LIN 2, a diretoria de produção precisou deslocar a gerência do Influenza para esse projeto novo, que é muito grande e complexo. Então surgiu o convite para assumir a fábrica I.” Douglas está no cargo há um ano e dois meses e brinca que, quando foi promovido, ninguém lhe mostrou as letrinhas pequenas – ano de pandemia E ButanVac…
Ser negro em um cargo de gestão: Douglas admite que há um certo peso em ser um entre tão poucos negros em cargos de gestão. Quando se tem foco na entrega, uma rotina que consome e a busca por sempre entregar o melhor, nem sempre essa questão fica em primeiro plano. “Mas quando você analisa o contexto, faz diferença. Eu quero ficar aqui um bom tempo e quero que o número de negros cresça, e não diminua”, afirma. Douglas acredita ter tido sorte de nunca ter sido vítima de preconceito explícito nem de seus gestores, nem de seus pares, mas lembra que quando era mais novo, na escola, o bullying era comum.
O que podemos fazer por um ambiente mais inclusivo: Educação, conscientização e programas de incentivo na base. Também é importante que não haja um filtro inicial em processos seletivos ou oportunidade de promoções de colaboradores, e que todos sejam sempre avaliados igualmente, sem que ninguém seja descartado por ser de um jeito ou de outro. “Aos poucos, não na velocidade que a gente gostaria, as coisas vêm melhorando. Na geração dos meus pais, por exemplo, tinha muito menos negros em posições estratégicas. Saímos da inércia.”
Jorge Alamini, 53 anos
Diretor administrativo do Butantan
Quem é: Toda vez que fala de sua história no Butantan, Jorge se emociona. Seu primeiro emprego foi na antiga Fundação de Construção da Universidade de São Paulo (Fundusp), e ele passava todos os dias na frente do Butantan para ir trabalhar. “Será que um dia ainda vou conseguir trabalhar aqui?”, pensava ele. Aos 25 anos, uma colega contou que havia concurso aberto para o instituto e ele decidiu prestar. Foi aprovado para o cargo de oficial administrativo e começou no Butantan na seção de compras. Depois de dois anos, virou encarregado da área e não parou mais: encarregado do setor de vigilância e portarias, chefe da zeladoria, do setor de subfrota, chefe de finanças… Até que, em 2017, recebeu o convite para se tornar diretor administrativo e, desde 2019, também é o ponto focal do estoque. “Eu tenho uma dívida de gratidão com o instituto e com tudo que ele já me proporcionou e ainda vai proporcionar não só a mim, mas a toda a população brasileira”, conta Jorge. “Saio todos os dias de casa falando que vou fazer o meu melhor sempre, em qualquer circunstância, sob pressão, em épocas de águas mais tranquilas.”
Ser negro em um cargo de gestão: Para Jorge, o Butantan é mais branco a partir de um certo grau de escolaridade e nível de cargos. E, segundo ele, essa é uma realidade antiga. “É muito difícil você encontrar um pesquisador negro aqui dentro”, assinala. Ele é o único de sua família com nível superior, conseguido a duras penas. “Eu não espero acontecer, eu faço os momentos favoráveis para que quando a oportunidade apareça eu tenha todas as condições.” Para Jorge, é essa postura de luta e de não cruzar os braços que o levou até onde está hoje.
O que podemos fazer por um ambiente mais inclusivo: Lutar por representatividade, estudar e se preparar para quando as oportunidades surgirem. Buscar especializações e sempre ampliar os conhecimentos. “Educação, no meu entender, é a chave transformadora de mudanças”, explica Jorge.
Hosana Santos Evangelista, 27 anos
Analista de sistemas sênior
Quem é: Hosana começou no Butantan como terceirizada quando tinha acabado de fazer 18 anos. Depois de seis meses, foi contratada como auxiliar administrativa. E depois de mais um ano, conseguiu ser transferida para a TI, área na qual estava terminando a graduação. De lá para cá, já são nove anos. Ela nem imaginava que a jornada seria tão longa e que envolveria também uma transformação pessoal: a transição capilar, que é sempre uma questão muito forte para as mulheres negras. “Antigamente a gente só alisava o cabelo na tentativa de se sentir aceito e estar bem. A gente achava que para estar profissional, para uma entrevista de emprego, tinha que estar de cabelo alisado, tudo alinhado.” No início do processo, quando cortou o cabelo curto, Hosana tinha receio do que os colegas poderiam achar – a boa notícia é que todos apoiaram. “Essa liberdade que eu tive aqui me deu muito mais coragem e autoconfiança.” Antes poucas assumiam seus cachos, mas hoje, ao andar pelo Butantan, é frequente ver mulheres com os cabelos naturais, assumindo sua liberdade capilar.
Ser negra na área de TI: Se o mercado de trabalho já é mais difícil para pessoas negras, imagine para uma mulher negra em um segmento predominantemente masculino. Hosana lembra que a faculdade era uma área elitizada onde havia muitos brancos e três, quatro negros na turma. “Quando a gente para pra pensar leva um choque, porque a maioria das pessoas ficam cegas em relação a isso e não percebem.” A situação, porém, tem melhorado. “As pessoas estão começando a se arriscar mais em outras áreas, estudando outras coisas. Acho que vai mudar ainda mais nos próximos anos, com as próximas gerações.”
O que podemos fazer por um ambiente mais inclusivo: Promover espaços mais diversificados e quem sabe até abrir oportunidades específicas, mas sem criar uma separação. Para Hosana, direcionar vagas exclusivamente para pessoas negras não seria o ideal. “É muito complicado mudar essa predominância branca, mas sem tornar isso um fardo, uma coisa ruim. Promover debates e cursos de formação pode ser um caminho para essa inclusão. Eu sou um ser humano como você, então não deveria importar a nossa cor.”