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Desde 1968 - Ano 56

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Julio Pompeu: ‘A cor e a dor’

Julio Pompeu (*) –

Sérgio é preto e isso é tudo que basta saber sobre ele. Também é engenheiro, bom centroavante em jogos de fim de semana, casado e pai de dois filhos, sócio de uma construtora, dono de apartamento com vista para o mar em bairro chique e sítio em lugar alto e de temperatura amena. Sérgio, na verdade, é muita coisa, mas todas essas coisas não importam para quem olha para Sérgio e só vê um preto. Igual a todos os pretos.

Sua religião é de preto, apesar de ser frequentada por muitos brancos. E só por ser religião de preto não é tratada por quem é de religião de branco como religião, do mesmo jeito que Sérgio, por ser gente, não é tratado como gente porque é preto. No fim de semana, não teve gira porque o terreiro que frequenta foi invadido e vandalizado por gente que não gosta de religião de preto. Que não quer preto rezando do jeito de preto rezar, porque o jeito de preto rezar é errado, feio e mau como tudo o que é de preto.

Seu filho é preto como ele. Estuda em colégio cheio de gente branca. É popular, mas alguns amiguinhos não o chamam para suas festas. “Não sei quem são os pais desse menino”, dizem os pais brancos que ensinam desde cedo qual a cor da suspeita.

Na rua, seu filho foi parado pela polícia em frente ao portão do prédio chique. Armas na mão e as ordens rotineiras dadas à gente perigosa de sempre. Seu amigo, também preto, recebeu as mesmas gentilezas policiais. O amigo branco não teve arma apontada para sua cabeça. Levantou os braços por não saber o que fazer com eles quando gente armada começa a gritar. “Fica na sua, garoto”, disse o policial acostumado a proteger e servir gente branca.

O assunto virou notícia. “Alguma coisa os garotos devem ter feito”, escreveu gente branca nos comentários da notícia. “Mas a cidade é perigosa mesmo, policial tem que se proteger”, escreveu outro que se diz não racista porque tem até amigo preto. “Gente, isso é mi, mi, mi. O Brasil não é racista. Isso é invenção dessa gente”. Dessa gente preta que insiste em querer ser tratada como gente, faltou dizer.

Sérgio abraçou o filho assustado. “Disseram para eu não andar na rua, que se me vissem novamente…”. É a polícia dizendo que ali não é lugar de preto, Sérgio sabe bem como é isso. Ouviu de várias maneiras, a vida toda, e lhe dói como uma punhalada ver sua história se repetir com seu filho, só porque a cor da pele se repete, do mesmo jeito que a cultura da escravidão também se repete.

É verdade que ela se renova, fica mais disfarçada. Muda de cara para não mudar de essência, mas as pessoas estão aí com seus comentários e atitudes para reforçar, dia a dia, a essência deste país em que preto tem o seu lugar e o seu destino. E causar estranheza e violência quando preto anda fora do seu lugar e ousa um destino diferente que o da senzala.

Para se distrair, ligou a TV e zapeou a esmo, só para hipnotizar-se com a sucessão de imagens e sons. Viu Jesus e apóstolos brancos de olhos claros. Viu eleições na França com muitos votos para partido que, abertamente, não quer gente preta dividindo o croissant por lá. Noutro canal, operação policial em bairro de preto, em que atira-se sem se importar com cabeças de crianças pretas que encontram balas perdidas e jornalista branco que comenta, indignado, o tamanho do engarrafamento que a operação está causando.

Suspirou pensando no quanto é incômodo para seus vizinhos ele estar ali com a sua cor e a sua dor que eles não têm sequer sensibilidade para tentar compreender.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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