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Após enchentes do século, Brasil segue despreparado para desastres climáticos

No início de maio deste ano, enchentes devastavam o Rio Grande do Sul e evidenciavam o potencial destrutivo das mudanças climáticas. Na época, especialistas frisaram que, mesmo com a intensidade das chuvas, os impactos poderiam ter sido mitigados com mais investimento em defesa civil.

Passados mais de seis meses desde a tragédia, a capacidade de resposta das cidades brasileiras a desastres praticamente não mudou, de acordo com dados compilados pelo Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional no Indicador de Capacidade Municipal (ICM).

O ICM monitora quais cidades têm estrutura e organização para responder a emergências semelhantes às chuvas que assolaram o Rio Grande do Sul. O índice abarca 20 critérios, entre eles a existência de um mapa das áreas de risco, a identificação de famílias vulneráveis e o funcionamento de sistemas de alerta.

A partir dessas informações, e considerando também fatores como tamanho da população e histórico de desastres em cada município, o ICM classifica as cidades em quatro categorias. Aquelas com melhor gestão de riscos ficam na categoria A, enquanto as menos preparadas ficam na categoria D.

No levantamento de junho de 2024, um mês depois das enchentes, o ICM indicava que 1.625 (29,1%) das 5.570 cidades brasileiras estavam na categoria D; 2.196 (39,4%), na categoria C; 1.268 (22,8%), na categoria B, e apenas 481 (8,6%), na categoria A.

A atualização mais recente mostra que pouco mudou desde então. No final de setembro, ainda havia 1.625 cidades na categoria D; 2.191 na categoria C; 1.271 na categoria B; e 483 na categoria A – praticamente a mesma proporção que no levantamento anterior.

Após tragédia, poucos avanços práticos

Victor Marchezini, pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), questiona alguns dos critérios escolhidos para classificar as cidades no ICM. “Não estão claros os critérios técnico-científicos que levaram à escolha dessas variáveis”, diz.

As poucas cidades que melhoraram de categoria, entre junho e setembro, após a tragédia no Rio Grande do Sul, implementaram apenas um ou dois novos mecanismos de gestão de risco, muitas vezes de ordem burocrática, como documentos e cadastros.

A cidade de São Borja, no Rio Grande do Sul, é um exemplo. No levantamento de setembro, o município passou da categoria C para B. Entretanto, isso aconteceu graças a uma única mudança: a prefeitura ativou sua conta no sistema nacional de informações sobre desastres, usado para comunicar o governo federal quando uma tragédia ocorre.

O município, que fica na fronteira com o Uruguai e sofre com enchentes frequentes, segue sem medidas como um plano de contingência para desastres, um cadastro das famílias em zonas de risco e um sistema de alerta antecipado.

São Borja não é uma exceção. Todas as novas medidas reportadas pelos municípios desde junho envolvem a capacitação de servidores, a elaboração de documentos ou o cadastro no sistema de informações do governo federal. Nenhuma mudança envolve procedimentos práticos, como programas de habitação social ou mecanismos de drenagem.

No Sul, cidades afetadas por enchentes seguem despreparadas

Devido às enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul, o estado decretou calamidade pública em 46 cidades. Na prática, o decreto de calamidade pública reconhecia que esses municípios estavam diante de uma crise grave e precisavam de ajuda urgente de outras esferas do governo pois não tinham como lidar com a tragédia sozinhos.

Ainda hoje, a maior parte dessas 46 cidades não têm políticas concretas para diminuir os danos em uma nova crise. Apenas 18 afirmam contar com sistemas de alerta antecipado, por exemplo. Só 22 têm programas para monitorar e vistoriar áreas de risco; 11 têm um cadastro de famílias vulneráveis; e 17 contam com programas de habitação social para pessoas que precisem ser realocadas.

No extremo da falta de estrutura, estão cidades como São Jerônimo, às margens do rio Jacuí, que não conta com nenhuma medida de mitigação além de ter órgãos de Defesa Civil ativos e fornecer algum orçamento para o tema.

Isso acontece apesar de São Jerônimo ser a cidade que mais teve situações de desastre reconhecidas pelo governo federal entre 1991 e 2023, de acordo com o Atlas Digital de desastres no Brasil, publicado pela Secretaria Nacional de Defesa Civil.

Foram 28 registros no período, com danos estimados em aproximadamente R$ 25 milhões. O número de desalojados ou desabrigados chegou a 28 mil – o que leva em conta quem teve de sair de suas casas mais de uma vez no período e, por isso, resulta num número maior que a população atual do município, de 21 mil habitantes.

Para Marchezini, do Cemaden, há pouco acompanhamento da reconstrução desses municípios, e pouco se sabe sobre quais lições foram aprendidas pelos gestores públicos durante a tragédia.

“Eu não conheço nenhum estudo que tenha avaliado quais foram as lições aprendidas pelos governos municipais, estadual e federal”, diz Marchezini. “É muito importante que a gente tenha financiamento de pesquisas que revisitem esses municípios e ajudem a entender as fragilidades e potencialidades antes do desastre.”

Norte e Nordeste mais vulneráveis

Ainda que a tragédia recente no Rio Grande do Sul tenha chamado a atenção para a falta de resiliência das cidades brasileiras, o Sul é a região do país onde há mais cidades bem avaliadas no ICM.

Aproximadamente 14% dos municípios do Sul estão na categoria A, o das cidades mais bem preparadas. O Sudeste tem um percentual semelhante de cidades na categoria mais alta (12%), e a realidade é ainda pior no Centro-Oeste (6%), no Norte (4%) e no Nordeste (4%).

Isso significa que essas regiões, que já têm indicadores econômicos e sociais menores, estão ainda mais vulneráveis no caso de um evento climático extremo. Em 2021, a Bahia, por exemplo, foi atingida por chuvas que afetaram cerca de 500 mil pessoas em dezenas de cidades. No estado, quatro de cada dez municípios está na categoria D, a de menor preparo.

Atacar causas dos desastres

Para Marchezini, o Brasil tem um problema adicional, além da falta de capacidade de resposta das prefeituras: o modelo de desenvolvimento do país, que causa grande impacto na natureza e aumenta os efeitos de eventos climáticos extremos.

“Não adianta investir num aparelhamento das defesas civis, se as causas dos desastres não têm sido atacadas na raiz”, diz o pesquisador.

“Não tem como pensar em redução de risco de desastre se não pensarmos em políticas que busquem reduzir o desmatamento, recuperar as bacias hidrográficas, lidar com consumo das águas, inclusive as subterrâneas, e com a qualidade delas”, afirma.

(Istoé)

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