Julio Pompeu (*) –
– Será? Ainda não estou certo. É preciso analisar com mais cuidado.
Visto de dentro da sala espaçosa e fresca de ar condicionado, o calor agonizante da tarde dava à cidade um ar preguiçoso que não combinava com a agitação de ânimos daqueles dias, mas que harmonizava perfeitamente com o tom de voz vago e melancólico do Doutor Amâncio.
– Mas as provas são mais do que evidentes. Veja só! Aliás, já estamos vendo a fumaça destes fatos há dois anos. Dois anos! Faltava só o fogo. Agora, nem isso! Que dúvidas Vossa Excelência ainda tem?
– Há situações que devemos enfrentar com calma, para não corrermos o risco de sermos injustos. Não se pode decidir sobre algo tão grave assim no calor do momento.
– Que calor? Que calor? Estamos há dois anos investigando, reunindo provas, depoimentos, documentos, imagens. Não há açodamento algum. O que temos é um incêndio! E temos que agir agora. Agora, Doutor Amâncio!
– Doutor Clêon, eu sei da gravidade dos fatos imputados. Mas tenho receio de colocarmos ainda mais lenha na fogueira acusando injustamente.
– Nós vimos o que aconteceu em janeiro. Agora, não temos mais dúvidas, foi a execução de um plano organizado por eles. Com a participação e comando dele. Se não fizermos nada agora, depois que todo mundo já está sabendo dos fatos, aí sim vai esquentar ainda mais essa fogueira, Doutor!
A entrada do garçom interrompeu a conversa. Serviu café com a polidez exagerada que lhe era habitual. “Cuidado com a xícara, Doutor! O café está muito quente”. Foram precisos alguns goles para retomarem a conversa após a saída do garçom.
– Um!… Acho que queimei a língua!…
– O garçom lhe avisou do mesmo jeito que estou lhe avisando agora. Se não tivermos certeza absoluta, podemos nos queimar.
– Tenho certeza absoluta!
– Mas eu ainda não estou totalmente convencido. E há muita gente neste país que concorda comigo. Essas pessoas já estão, inclusive, de cabeça quente com toda essa situação. Podem fazer mais alguma loucura.
– Loucura é nós não fazermos nada. Temos que prendê-lo. Agora! Enquanto o assunto está quente na imprensa.
– Mas nós estamos fazendo alguma coisa. Aliás, muita coisa. Tenho conversado com muita gente sobre o assunto para abaixar a pressão e termos calma para fazer nosso trabalho. Tenho usado tanto o celular esta semana que ele está ardendo como brasa.
– Doutor, doutor… peço desculpas pela minha franqueza, mas nosso trabalho não é o de telefonar para muita gente. Temos que denunciá-lo. E prendê-lo. E já! Antes que coloquem fogo ou explodam algum prédio. Já tentaram isso. Tentaram até matar! O que falta para Vossa Excelência se convencer?
– Provas mais robustas. Que não virem brasas.
– Temos as mensagens entre eles. Temos documento, com plano de assassinatos, impresso dentro do Palácio. Temos testemunhas. Temos a minuta de um decreto para tomarem o poder com a desculpa de apagarem o incêndio que eles mesmos provocaram. Mais uma vez, o que falta?
Um vento frio tomou conta da sala quando o assessor entrou, interrompendo mais uma vez a conversa.
– Doutores, boa tarde, com licença. Desculpe a interrupção, Doutor Amâncio, mas é sobre o processo de que lhe falei ontem, como disse, há alguma pressa porque…
– É sobre aquele dos traficantes?
– Sim senhor, quer dizer, há duvidas sobre ser tráfico ou uso porque temos apenas a quantidade maconha e…
– Sim, eu sei. Fale para o Doutor Prepúcio denunciar e pedir logo a prisão deles. Deixar esse tipo de gente na rua é um perigo… Ah! Aproveite e peça para alguém diminuir a temperatura do ar. O café está esfriando muito rápido.
(+) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.
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