Eduardo Martins (*) –
Não tem como estudar história indígena e não ler o clássico “Enterrem meu coração na curva do rio”, Dee Brown, publicado originalmente no ano de 1970, nos EUA. Livro pungente, vibrante, agonizante e friccional. O relato mais real e cru da destruição sistemática dos povos indígenas que habitavam as terras da América do norte desde os tempos imemoriais.
Brown narra os relatos tanto dos opressores “brancos”, homens não indígenas, representados por fazendeiros, madeireiros, garimpeiros, mas sobretudo, o próprio Estado norte Americano representado por seu Exército – do outro lado; relatos de jornalistas, políticos e finalmente as vozes dos chefes indígenas denunciando o roubo das suas terras – as mentiras, traições, falcatruas, e demais artimanhas – como o uso do “Destino Manifesto”, 1848, para tratar os indígenas como selvagem, bárbaros, pagãos, e assim, deslegitimá-los, enquanto pessoas de direitos, enquanto, cidadãos norte americanos.
O livro é um épico trágico de uma população que habitava ancestralmente um vasto território que cobria as terras das planícies e das montanhas sagradas, Black Hills do Noroeste e Oeste da América do Norte, do rio vermelho, golfo do México, até o Canadá. Centrado no século XIX, a narrativa, circunscreve pouco antes da Guerra Civil, 1861-1865, e após o seu desfecho quando o Estado bélico-militar dos EUA avança violentamente contra as populações indígenas daquela região, (mitificada por hollywoood, nos bang bang, como o velho oeste).
Durante o período entre 1865 e 1890, essa região será palco de intensas e sangrentas batalhas entre as populações indígenas, que originalmente habitavam e, os invasores. Ao longo deste período foi sendo construída uma série de Fortes Militares, a princípio, em razão da Guerra Civil, posteriormente, usadas como prisões para os indígenas que seriam removidos para terras estranhas e inférteis.
Trata-se de uma narrativa crua do processo de colonialismo, ou neocolonialismo, em que após o processo de Independência das treze Colônias, ou criação dos Estados Unidos da América, 1776, as elites burguesas; protestante, branca, escravagistas, descendente europeia, cem anos depois. Em continuidade àquele tipo de invasão contra as terras das populações indígenas que ali habitavam, promovendo o seu genocídio.
O livro segue uma ordem cronológica, 1860 até 1896, didática e esquematicamente situando uma espécie de começo, meio e fim das batalhas travadas pelos chefes indígenas contra os invasores; lutas, guerras, resistências, protagonismos indígenas. Revelando as táticas e estratégias, na defesa das suas terras, do seu território; levado a cabo pelas diversas etnias do Oeste que resistiam contra todos os tipos de invasores e suas armas pesadas, artilharias bélicas e seus homens treinados e preparados para a guerra, os “casacos azuis”. Lutando contra os dois exércitos da União e Confederados, ambos tinham os indígenas como inimigos comuns, tanto o general Lee, quanto o assassino de indígena general Sheridan, este vai dizer que “índio bom é índio morto”. Ou ainda o maior de todos os inimigos indígenas, general Custer.
Narra, as artimanhas as mentiras, inclusive por parte dos presidentes do EUA, “Grande Pai”, em tentar interceder nas lutas; até mesmo decisões judiciais são desrespeitas quando se tratava de remover alguma etnia do seu território como é o caso dos indígenas Utes, das montanhas rochosas do Colorado, que já haviam visto os invasores expulsar seus velhos inimigos cheyennes, das planícies do Colorado. Agora infestada por garimpeiros facínoras que viam os indígenas como animais que deviam ser abatidos, inclusive mulheres e crianças.
Uma tática sutil foi utilizada contra os indígenas acusando-os de comunistas, sensibilizaram a opinião pública da necessidade da sua remoção, em nome do “progresso”, argumentando que eles viviam de modo parasitário, eram preguiçosos, etc. A ponto do governador dar uma declaração à imprensa de que os indígenas Utes deviam ser exterminados. No ano de 1881 o Exército tocou, como gado, numa marcha de 550 km do Colorado até Utah, onde a esmagadora maioria foi morrendo durante esse trágico êxodo; as etnias Cheyenne, Arapacho, Kiowa, Comanche, Jicarillas e os Utes, todos varridos do Colorado.
Infelizmente, não temos no Brasil uma obra dessa envergadura, ainda que John Monteiro no seu clássico “Negros da terra” busque traçar uma relação muito próximo da escravização das populações indígenas da região, onde nos séculos XVI, XVII e XVIII eram a capitania de São Paulo, os massacres indígenas promovidos pelos bandeirantes com ou sem as permissões do rei de Portugal, que muitas vezes, fazia “vista grossa”, até mesmo a Igreja Católica que se punha contrária aos interesses dos bandeirantes, possuam indígenas escravizados. Monteiro, narra o massacre dos povos das reduções guaraníticas, cerca de 40 mil pessoas, já cristianizadas, a destruição do Guairá; Guarani, Guaianá e os Kaingang, levada à cabo por Raposo Tavares.
Assim como os indígenas do Colorado Norte Americano estes foram forçados a marchar das fronteiras com o Paraguai até São Paulo, estima-se que entre os anos 1628 e 1630, 60 mil indígenas foram arrancados das suas terras na província do Paraguai. Monteiro remonta aos relatos de padres, obtidos nos arquivos das cúrias, assim como outros documentos oficiais como relatórios de governadores e das câmaras municipais das localidades e relatos de viajantes europeus, tal documentação não foi capaz de captar as falas dos indígenas, tampouco dos bandeirantes, diferentemente do livro de Brown.
Brown lança mão de autobiografia indígena, depoimentos, artigos de jornais, registros oficiais. Porém, o mais contundente são as falas dos próprios chefes indígenas das etnias: Dakota, Ute, Cheyenne, Sioux, entre outras, narrando com suas próprias palavras sua história sobre as batalhas contra os invasores e os massacres sofridos por seu povo, mas também as vitórias contra o poderoso exército yankee.
Ainda que derrotados, o que vemos na narrativa é que os chefes indígenas sempre lutaram para defender seus territórios e, sobretudo, seu povo: Cavalo Doido, Touro Sentado, Nuvem Vermelha, Pequeno Corvo, Urso de Pé, Antílope Ligeiro, Urso Pintado, Pena de Corvo, Fantasma Branco, Colar de Lobo, entre dezenas de chefes indígenas que cederam suas palavras para contar sua visão e versão sobre as invasões das suas terras e a violência sofrida por seus povos, são exemplos de chefes que não se entregaram tampouco venderam sua terras ao Estado colonialista.
Deve ser lido, incontornavelmente, para se conhecer as conjunturas sob as quais o processo da dita civilização ocidental se fez, sob o custo de milhões de vidas de pessoas indígenas, para fins do roubo das suas terras e riquezas naturais, da sua inescrupulosidade que forjou esse tipo de sociabilidade e democracia burguesa colonialista, excludente da cidadania para as populações indígenas, até os dias atuais, no século XXI.
Verás que o passado, não é, meramente, uma questão de tempo, mas de lugar social onde se colocam aquelas pessoas indesejáveis para o sistema capitalista, assim os séculos XVI, XVII e XVIII no Brasil, e XIX nos EUA, teimam em permanecer estáticos em relação aos direitos indígenas e a sua cidadania.
Para saber um pouco mais sobre o chefe indígena Cavalo Louco: https://operamundi.uol.com.br/hoje-na-historia/podcast-hh-1877-lider-indigena-cavalo-louco-morre-apos-ser-capturado-nos-eua/. Acesso em 20 jan 2025.
(*) Docente adjunto 4, UFMS, CPNA, curso de história.