Wilson Matos da Silva (*) –
A luta dos povos indígenas pelo reconhecimento de seus territórios tradicionais enfrenta uma série de obstáculos históricos, políticos e institucionais. Dentre eles, destaca-se o conceito de renitente esbulho possessório, que expressa a violenta expulsão dos indígenas de suas terras, seguida de uma resistência persistente para recuperá-las.
A tese do Marco Temporal, que condiciona os direitos indígenas à ocupação física das terras em 5 de outubro de 1988, ignora esse contexto de conflito e desconsidera a própria Constituição Federal.
Desde a chegada dos colonizadores portugueses, os territórios indígenas foram sistematicamente invadidos e apropriados. O processo se intensificou no século XIX com a expansão agropecuária e no século XX com a política desenvolvimentista do Estado brasileiro.
O regime militar (1964-1985) consolidou a política de esbulho, promovendo a remoção forçada de comunidades indígenas para abrir espaço para projetos de colonização, hidrelétricas e monoculturas. Muitos povos foram deslocados e confinados em pequenas áreas, sem respeito às suas formas tradicionais de ocupação e uso da terra.
O constitucionalista José Afonso da Silva esclarece que a expressão “tradicionalmente ocupada”, presente no artigo 231 da Constituição, não se refere a um marco temporal específico, mas sim ao modo de ocupação dos povos indígenas. Segundo ele: “O tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção.“
Essa interpretação desmonta a tentativa de impor um recorte arbitrário de 1988, pois o direito à terra indígena não se baseia apenas na presença física ininterrupta, mas sim no vínculo cultural, histórico e social que os povos mantêm com seus territórios, mesmo quando impedidos de ocupá-los de forma plena.
O esbulho possessório contra os povos indígenas no Brasil é um fenômeno histórico e persistente. Longe de ser um evento pontual, trata-se de um processo estrutural que tem suas raízes na colonização e se perpetua até os dias atuais por meio de diferentes mecanismos políticos, econômicos e jurídicos.
O conceito de renitente esbulho possessório reflete exatamente essa dinâmica: a ocupação ilegal e continuada de territórios tradicionais, impulsionada pela omissão do Estado e pela conivência dos poderes institucionais.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Raposa Serra do Sol, reconheceu que a posse tradicional não se perde quando os indígenas foram forçados a sair de suas terras por atos de violência. O ministro Carlos Ayres Britto afirmou:
“A tradicional idade da posse nativa não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios.”
Essa decisão confirma que os territórios que foram tomados à força continuam sendo terras indígenas, pois a resistência ininterrupta da comunidade demonstra a permanência de seu direito. O esbulho renitente, portanto, é prova da violência histórica do Estado contra os povos indígenas e da necessidade de restituição de suas terras.
A resistência indígena enfrenta também uma gestão estatal parcial e uma narrativa midiática tendenciosa. Como afirma Dom Roque Paloschi, presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi):
“Os povos indígenas são, historicamente, vítimas do Estado brasileiro porque, através das instituições que representam e exercem os poderes político, administrativo, jurídico e legislativo, ele atua, quase sempre, tendo como referência interesses marcadamente econômicos, e não os direitos individuais, coletivos, culturais, sociais e ambientais.”
A mídia dominante reforça essa visão distorcida, criminalizando os processos de demarcação de terras e disseminando a falsa ideia de que os territórios indígenas são “improdutivos”. Essa narrativa serve a interesses do agronegócio e de grandes latifundiários, que se beneficiam da ocupação ilegal de terras indígenas.
A procuradora Deborah Duprat destaca que o artigo 231 não protege apenas a terra enquanto propriedade física, mas também a relação cultural dos povos indígenas com seus territórios.
Esse reconhecimento constitucional torna inviável qualquer tentativa de vincular o direito territorial indígena a um marco temporal fixo, pois ignora que muitas comunidades foram impedidas de exercer plenamente seu modo de vida por violência, expulsões forçadas e perseguição.
A tese do Marco Temporal é um artifício político que desconsidera a história de expropriação dos povos indígenas e ignora a própria Constituição Federal. O conceito de renitente esbulho possessório desmonta esse argumento, demonstrando que a perda da posse por violência não elimina o direito dos indígenas sobre a terra.
A luta indígena pela demarcação de seus territórios é uma batalha contra um Estado historicamente parcial, uma mídia manipuladora e um sistema econômico que insiste em negar direitos fundamentais. O reconhecimento dessas terras não é um favor, mas uma obrigação constitucional que o Brasil tem para com seus povos originários.
(*) É Indígena, Advogado Criminalista OABMS 10.689, especialista em Direito Constitucional, é Jornalista DRT 773MS. residente na Aldeia Jaguapiru – Dourados MS. [email protected]