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Julio Pompeu: ‘Simão trabalhador’

Julio Pompeu (*) –

A cidade acorda antes do sol. Aos poucos. Ainda fria e escura, tem o silêncio ruidoso da madrugada rompido aos poucos por carros, carrões, caminhões, buzinas, gritos e latidos. Simão acorda ainda antes. Trabalha longe de casa. Há muito dia no seu dia antes do dia de trabalho começar.

Olha-se no espelho antes de lavar o rosto, só para perceber, dia a dia, o quanto seu rosto muda enquanto nada mais na sua vida parece mudar. Não passou a mesma vida na mesma casa, nem na mesma cidade, nem no mesmo emprego. Mas é como se tivesse passado. Sempre com pouco, sempre faltando alguma coisa, sempre numa periferia, sempre ganhando pouco e engolindo desaforo para não perder o emprego. A vida de Simão passa enquanto nada na sua vida parece passar.

Espera com medo o ônibus no ponto escuro. Medo de bandido, de polícia, de bala perdida e de chegar atrasado. Entra no ônibus ainda vazio, que não demora a encher e andar devagar nas ruas cada vez mais encalacradas. Ouve a conversa da gente ao seu lado. Fofocas. Desabafos. Futebol. Reclamações. Piadas. Conversas banais de vidas banais como a sua.

As notícias lhe parecem ruídos. Coisas de gente, mundos e vidas de muito longe da sua. Taxas de juros, selic, guerra comercial, Simão nem sabe o que é isso. Ouve e vê gente falando que é importante por isso e por aquilo, mas Simão não sabe o que é isso e nem aquilo.

Pedro, do sindicato, insiste com Simão, quase todo dia, o quanto essas coisas são importantes porque têm a ver com a vida dele, com a vida de todo mundo. Que tem que lutar por isso, junto com todo mundo. Simão não é de briga. Até porque, apesar de não entender nada das coisas que tanta gente diz que é importante, sabe muito bem que neste tipo de luta ele entra para apanhar. Sabe muito bem que esse “todo mundo” de quem Pedro fala não é bem “todo mundo”.

Sabe que há o mundo dele, de Simão, onde nada muda, onde ele sempre ganha pouco, onde ele sempre apanha, onde tudo é do mesmo jeito sempre, até quando tudo muda. E há o mundo dos outros, onde gente engravatada diz com empáfia o quanto se preocupa com gente ignorante feito Simão, enquanto se esforça para que nada mude de verdade na vida de Simão. Simão sabe o seu lugar. E sabe que lugares não mudam. Simão é ignorante, mas não é besta.

Chegou atrasado por causa do trânsito. Ouviu bronca calado e vai ser descontado. Comeu marmita fria porque não tinha onde esquentar. Voltou para casa em ônibus lotados. Quatro horas de trajeto. As duas horas de sempre, mais duas horas parado por causa de tiroteio sabe-se lá entre quem desta vez. Simão pensou na gente morrendo de tiro enquanto ele morria, aos poucos, de fome, de cansaço e de má lida.

Chegou em casa molhado de chuva. Tomou banho frio porque lá, quando chove, falta luz e a companhia de luz demora a consertar porque falta gente para isso. Para empresas, gente que nem Simão é custo alto quando o serviço é para gente que nem Simão.

A cidade vai, aos poucos, dormindo. O silêncio interrompido vez ou outra por uma moto, buzina ou outro veículo barulhento vai se instalando. Simão tem sono. Está cansado do dia, do mês, do mesmo. Ele dorme depois que a cidade dorme, para acordar antes dela acordar. Amanhã será um novo dia e Simão vai dormir sem saber se o que faz sempre é para ganhar a vida ou para perdê-la na esperança de que um dia as coisas mudem.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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