Wilson Matos da Silva (*) –
Este artigo se dedica à memória do povo Terena em Dourados. Por isso, não se estende às histórias igualmente valorosas dos povos Kaiowá e Guarani, aos quais rendo minha saudação. Em nome do primeiro cacique Kaiowá, Ireno Isnard, e do inesquecível líder Guarani, Marçal de Souza, presto meu respeito e reconheço a importância de suas trajetórias na construção deste território compartilhado. Se aqui não menciono todos os grandes nomes Kaiowá e Guarani é porque me cabe, neste momento, trazer à tona uma história esquecida sobre meu povo, os Terena. Mas A SOLIDARIEDADE ENTRE NÓS, PERMANECE FIRME como o chão vermelho desta terra, que nos une no passado, no presente e no porvir.
A história do povo Terena em Dourados é, ao mesmo tempo, uma epopeia de resistência e uma crônica do esquecimento. Muito antes da criação oficial da Reserva Indígena de Dourados (RID), os Terena já desbravavam o território. Em 1913, fugindo da fome e dos conflitos desceram pelo chaco, famílias Terena e Kinikinau, oriundas da Terra indigena Cachoeirinha e TI Buriti, cruzaram o rio Paraguai, pela então Colônia Militar dos Dourados, (hoje Antônio João-MS), povoado de Eldorado, atualmente Distrito de Ithum e abriram a chamada “picada dos bugres” (hoje Picadinha), até alcançarem o cerrado de Dourados.
Ao chegarem, encontraram os Guarani Kaiowá, que já perambulavam pela região, mas não conseguiam fixar seus tekoha devido à cobiça pelo solo vermelho e fértil. Juntos Terena, Guarani e Kaiowá, formaram o primeiro tekoha no Boqueirão. A convivência durou pouco: foram violentamente atacados por grupos de “justiceiros” — colonos armados que buscavam apagar sua presença.
O ápice dessa violência foi um massacre ocorrido em 28 de setembro de 1914, no qual tombaram diversos indígenas, entre eles Emílio Silva Reginaldo, ancestral direto deste autor. Somente após esses confrontos, o Estado brasileiro reconheceu a presença indígena: em 3 de setembro de 1915, por meio do Decreto nº 401, foram reservados 3.600 hectares para a criação da Reserva Indígena de Dourados. Hoje, essa mesma área abriga mais de 23.500 indígenas, divididos entre as aldeias Jaguapiru e Bororó — um território exíguo diante do crescimento populacional e da ancestralidade territorial negada.
Apesar de tento ostracismo, a memória resiste. Nomes como: Emilio da Silva Reginaldo, Antônio Bororó que empresta o nome a uma das aldeias, Manoel Bertolino, Pedro Rodrigues, Floriza Machado, Laurindo da Silva, Livergina Reginaldo, Inocêncio Ribeiro, Ramão Chané, Julieta da Silva, Celestina Roberto, Negrinho Machado, Theodora da Silva. entre tantos outros, são parte da memória oral que atravessa gerações.
A história, porém, não termina aí. Em meados da década de 1960, uma nova leva de famílias Terena chegou à RID, convidadas pela então diretora da Missão Evangélica Caiuá, Lóide Bonfim Andrade. Entre os pioneiros desse novo ciclo migratório estavam Guilherme Felipe Valério e sua esposa Maurícia Mariano, acompanhados da irmã Joaninha Felipe Valério, oriundos da TI Taunay/Ipegue.
Vieram também Ângelo Massi de Morais, José Aquino, Malaquias Valério, Zélia Galdino, João Mariano Filho, Inocêncio Joaquim e Natália Joaquim, entre outros. Esses nomes marcaram presença ativa na organização religiosa e na reafirmação cultural do povo Terena. Guilherme Felipe Valério, por exemplo, foi um dos fundadores da primeira congregação Presbiteriana na RID, e com saudades de sua aldeia de origem — chamada por ele de Panana — buscou reunir seus parentes e tradições.
Essas famílias foram responsáveis por manter vivas as danças tradicionais Hiokexoti, Kipaé e Siputerenoe dentro da RID, difundindo os valores Terena entre as novas gerações. Dessa movimentação cultural e política, nasceu em 2023 a Organização Terena da Grande Dourados, fruto da articulação de educadoras indígenas como Késia Valério, Midian Valério, Magna Freitas e Neuza Meireles que buscaram apoio Jurídico com Dr Wilson Matos. A entidade passou a organizar a Assembleia Terena da RID, elegendo representantes por segmentos como educação, saúde, juventude, agricultura, segurança e religião — uma forma de reconstruir a autonomia em meio ao esquecimento institucional.
O silêncio das políticas públicas em relação aos Terena de Dourados-MS não é acaso. É projeto. É apagamento. Poucos sabem — e quase ninguém reconhece — que esse povo guerreiro fincou raízes aqui há mais de um século, ainda em 1913/1914, quando seus ancestrais desceram do Chaco Paraguaio fugindo da guerra e da fome.
Apesar da centralidade dos Terena na construção social, cultural e até espiritual da região de Dourados, seu protagonismo tem sido sistematicamente apagado. A narrativa histórica dominante frequentemente prioriza a presença Guarani Kaiowá — igualmente legítima —, mas marginaliza a fundação Terena do território. A própria existência da RID, oficialmente reconhecida apenas após o massacre de 1914, é prova de que o Estado só age quando o sangue indígena já foi derramado.
Hoje, os Terena continuam resistindo. Reafirmam seu pertencimento, suas práticas e sua história mesmo diante da expropriação territorial, da violência estrutural e da tentativa permanente de apagamento. ESTA É UMA MEMÓRIA QUE NÃO PODE MAIS SER RELEGADA AO SILÊNCIO.
É necessário recontar a epopeia Terena de Dourados, essa façanha não é apenas um exercício de justiça histórica, mas um passo necessário para romper com a política do esquecimento que marca a relação do Estado com os povos originários.
(*) É Indígena, Advogado Criminalista OAB/MS 10.689, especialista em Direito Constitucional, é Jornalista DRT 773MS. residente na Aldeia Jaguapiru – Dourados MS. [email protected]