fbpx

Desde 1968 - Ano 56

24.2 C
Dourados

Desde 1968 - Ano 57

InícioColunistaAsas de Tinta: O canto da terra que ninguém cala

Asas de Tinta: O canto da terra que ninguém cala

Reinaldo de Mattos Corrêa (*) –

O Pantanal não sussurra. Ele grita em cores, cheiros e sons. Mas quem traduzirá esse lamento em manchetes?

O Despertar da Terra
7 de abril de 2025. Amanhecer na Serra da Bodoquena.

A jornalista Clara Ribeiro acorda antes do sol, como sempre, para o quebra-torto pantaneiro. No rádio, a voz rouca de um locutor anunciava mais um incêndio na região do Nabileque. Seus dedos, marcados por tinta de caneta, tremiam ao segurar o café. Dez anos de redação a ensinaram: notícias são efêmeras. Mas ali, diante da janela, o horizonte sangrava fumaça. Algo em seu peito ardia mais que o fogo distante.

Quantas tragédias precisam virar cinzas antes que uma repórter se torne parte do solo que cobre?

O Encontro das Águas (e das Palavras)
Margens do Rio Paraguai, onde o canto das araras-azuis corta o silêncio.

Clara encontra o ancião Terena, Alberto, que tece uma rede sob a sombra de um ipê. Ele não fala do fogo, mas do rio que seca, dos peixes que nascem com plástico no ventre. “Os brancos dizem que progresso é reto, mas rio que é reto vira esgoto”, murmura. Clara grava, mas sua mente ecoa: Como narrar a morte lenta de um rio sem virar estatística?

O que acontece com uma sociedade quando suas histórias são contadas por quem não escuta a terra gritar?

A Redação-Fantasma
Noite na sede do jornal O Eco do Pantanal.

Clara revisa o próprio texto sobre o incêndio. O editor cortara 80%: “Muito poético. Precisamos de dados, não de drama.” Ela olha para a foto na parede: uma arara-azul, espécie resgatada da extinção. Como salvar o que resta se as palavras são engolidas pelo lucro?

Se uma manchete pode mudar o curso de um rio, quantas páginas precisaríamos para ressuscitar um bioma?

O Sonho das Araras
Clara adormece em sua escrivaninha. Sonha com vozes.

Uma arara-azul pousa na máquina de escrever: “Vocês, humanos, têm medo do fogo. Nós temos medo do silêncio.” Outras vozes surgem: o rio, a onça-pintada, o cerrado. “Contem nossas histórias como guerras sagradas”, rugem. Clara acorda com lágrimas secas.

E se o jornalismo fosse uma ponte entre o humano e o divino que habita cada árvore?

A Primeira Página do Amanhã
Madrugada de 8 de abril de 2025.

Clara publica, por conta própria, “O Último Grito do Chaco”. Sem editoriais, apenas verdades: nomes de empresas, mapas de desmatamento, histórias de ribeirinhos. O texto viraliza como fogo em campo seco. Jornalistas de MS a seguem. Nas redes, a hashtag #JornalismoRaiz brota.

Qual será a manchete no dia em que o Pantanal deixar de respirar?

O Código das Águias
Um ano depois. Clara, agora em uma rede colaborativa de repórteres ambientais, recebe uma carta.

Uma criança de Corumbá escreve: “Vi a reportagem. Quando crescer, vou ser jornalista-árvore. Minhas palavras vão ter raízes.”

O jornalismo não é espelho. É semente. Plante-a onde o mundo sangra.

Nota do Autor:
Esta história é um chamado à metamorfose. Às redações de Mato Grosso do Sul: as ferramentas de trabalho jornalístico são asas. O Pantanal, o Cerrado, o Chaco — todos são fontes vivas. Que as perguntas escavem mais fundo que as motosserras. Afinal, qual história valerá a pena contar quando o último ipê cair?

*Produtor Rural em Mato Grosso do Sul.

- Publicidade -

ENQUETE

MAIS LIDAS