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Como as condicionantes da Raposa Serra do Sol foram transformadas em política de Estado contra os povos indígenas, por Wilson Matos

Wilson Matos da Silva (*) –  

No dia 23 de abril de 2008, às vésperas do julgamento histórico da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, fui nomeado, por unanimidade da diretoria do Conselho Federal da OAB, membro do Grupo de Trabalho criado para estudar os temas tratados nos autos do processo e demais assuntos ligados à causa indígena. A decisão foi liderada pelo então presidente Cezar Britto. Compunham o GT os doutores Lúcio Flávio Joichi Sunakozawá (Coordenador), Joênia Batista, Ubiratã Maia e eu, Wilson Matos da Silva.

Na condição de membro desse GT e de militante histórico da causa indígena, tive a oportunidade de me reunir com o então relator do processo no Supremo Tribunal Federal, Ministro Carlos Ayres Britto. Em audiência no seu gabinete, alertei para o risco de que as “condicionantes” formuladas no julgamento da Raposa fossem tomadas como parâmetros gerais e vinculantes para as futuras demarcações, o que transformaria um caso específico em armadilha generalizada. O Ministro me assegurou que se tratava de algo exclusivo daquele processo. Mas a realidade mostrou que a minha advertência não era apenas prudente — era urgente.

Em 2009, poucos meses após a decisão, o então Advogado-Geral da União, Luiz Inácio Adams, editou a Portaria 303, transformando aquelas condicionantes em diretriz obrigatória para toda a Administração Pública Federal. A reação indígena foi forte, e a Portaria foi revogada. Mas em 2016, o mesmo conteúdo ressurgiu no Parecer 001/2017 da AGU, que serviria como munição jurídica para sustentar o chamado Marco Temporal no julgamento da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ.

Não só vislumbrei com antecedência a traição do espírito da Constituição, como também vivenciamos e enfrentamos, passo a passo, a tentativa do Estado de consolidar uma jurisprudência de exceção contra nós indígenas — travestida de legalidade. Este fato só se comprova, que o meu raciocínio jurídico, político e histórico estava mais atento e alinhado com os fatos que viriam do que a própria leitura “garantista” de ministros da época. Essa minha lucidez, não é comum. Ela nasceu forjada no lugar da luta, da escuta ancestral e do compromisso com a verdade viva dos nossos Povos Indígenas.

Essa escuta sensível me acompanha desde antes da Constituição de 1988, quando militei ao lado de guerreiros da palavra e da dignidade, como Ailton Krenak, Marcos Terena, Joênia Wapichana, Idiahury Karajá, Azelene Kaingang, Carlos Terena, Scraem Sompré, entre tantos outros que empunharam a pena como flecha para garantir os direitos que hoje figuram na Constituição Cidadã. Lutamos nas ruas, nas aldeias, nas comissões e nos auditórios. Levamos nossa voz a Brasília e fincamos nossas marcas no texto constitucional. Somos parte viva do processo constituinte. Somos memória que caminha.

Também integrei a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), onde atuei como coordenador da Subcomissão de Justiça, Segurança e Cidadania — uma das mais relevantes da CNPI. Minha designação oficial como membro da CNPI foi publicada no Diário Oficial da União nº 076, de 20 de abril de 2007 – Seção 2, por meio da Portaria MJ nº 789, de 18 de abril de 2007.

Por isso afirmo: as condicionantes da Raposa não foram o fim de um processo, mas o início de uma política de Estado que buscou subverter o princípio da posse tradicional e o mandamento do artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. De lá para cá, a “pá de cal” lançada por Ayres Britto virou semente de um projeto de paralisação das demarcações, de criminalização das retomadas e de negação dos direitos originários.

O julgamento do Marco Temporal apenas explicitou o que já vínhamos denunciando: há uma ofensiva jurídica organizada, com base institucional e apoio político, para sufocar os povos indígenas. Mas a história nos ensina: por mais que tentem nos enterrar, seguimos semeando.

Somos a memória que caminha, a flecha que não erra. Endurecemos contra a traição, mas nossa ternura guarda a terra. Que a nossa luta nunca cesse até que a justiça floresça.

(*) É Indígena, Advogado Criminalista OAB/MS 10.689, especialista em Direito Constitucional, é Jornalista DRT 773MS. residente na Aldeia Jaguapiru – Dourados MS. [email protected]

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