Ricardo de João Braga (*) –
Tomo a simplicidade de Jesus Cristo, felizmente e sempre reavivado em nosso Natal, para convidar o leitor a analisar nosso pacto social. O que se apresenta muitas vezes como complicado, pode ser simples, para quem tem olhos para ver.
O mercado produz riqueza como nenhum outro mecanismo social até hoje inventado. Contudo, infelizmente concentra essa riqueza. Seu meio é a troca. Quem tem recursos consegue acumular mais. Depois de certo nível, o dinheiro trabalha para o dinheiro. Por outro lado, quem tem pouco ou nada sofre para sobreviver e muito mais para acumular. Uns compram força de trabalho, outros a vendem e vendem a si mesmos.
“Quem tem recursos consegue acumular mais. Depois de certo nível, o dinheiro trabalha para o dinheiro”
O Estado primordialmente não produz riqueza, mas apoia sua criação ou impede o pleno desenvolvimento de sua produção. Por outro lado, pode ser um grande alocador de recursos. Diferente do mercado, ele usa a autoridade para distribuir: com seu poder de tributar e suas decisões de gasto, tira riqueza de uns e distribui a outros – que podem ser os mesmos ou não.
Cada sociedade, ao conjugar mercado e Estado, realiza seu pacto social. Quem os conjuga é a política. Em algum grau nós seres humanos tomamos decisões sobre o que produziremos, quanto, quem ficará com qual parte. O mercado em geral é o motor, o Estado o regulador. Assim, Estado e mercado subordinam-se às necessidades humanas. Desconfiem de quem diz que o mercado é o senhor. Assim como o homem não foi feito para o sábado, mas o sábado para o homem, nós não fomos feitos para o mercado, mas ele para nós.
O Estado retira da sociedade um volume de recursos e o distribui. E o que é o pacote fiscal do governo federal? São decisões de cortes de gastos aqui e aumento de receitas acolá. Ele é uma tentativa, uma proposta, mais ou menos bem sucedida ou suficiente, de igualar receitas e despesas. E para fins práticos, arrecadar mais é igual a cortar gastos, porque o objetivo é equilibrar as contas.
“E para fins práticos, arrecadar mais é igual a cortar gastos, porque o objetivo é equilibrar as contas”
Pois bem, aqui Jesus pode nos ajudar a entender com clarividência a essência do pacote. A premissa é que o dinheiro sai da sociedade e volta para a sociedade. Assim, as perguntas cristãs mais básicas devem ser: de quem sai o dinheiro? Para quem vai o dinheiro? Para quem já tem de sobra, ou para quem lhe falta? Para Lázaro ou para o rico enfarado?
Se os cortes de gastos caem sobre os mais ricos e preservam-se os mais pobres, talvez poderíamos chamar isso de ajuste fiscal cristão, mais ainda considerando a vida comunista do cristianismo primitivo. (Aos alarmados, o comunismo era a forma de vida das primeiras comunidades cristãs. Marx e Engels vieram 1800 anos depois com seu “comunismo científico”. Pode parecer estranho a alguns, mas Cristo era comunista em vários sentidos).
“Pode parecer estranho a alguns, mas Cristo era comunista em vários sentidos”
Diferentemente, se os ricos não pagam mais e não sofrem cortes, e ao contrário o fardo recai apenas sobre os mais pobres, talvez possamos chamar esse ajuste fiscal de obra do tinhoso. Mais sofrimento para Lázaro!
Na época de Jesus seus grandes opositores foram os fariseus. Uma casta privilegiada que se encarregava de guardar, interpretar e ensinar os mandamentos divinos. Jesus, com sua simplicidade radical, andava com as pessoas humildes e excluídas do povo e dizia que o reino de Deus exigia apenas amor a Deus e ao próximo. Os fariseus, por sua vez, tinham mais de 600 regras para dizer quem era limpo e santo, e quem sujo e pecador. Para os fariseus, Jesus era subversivo, sujo, corrupto e pecador. Dá-lhe Caifás!
“há um exército de fariseus prontos a brandir suas 600 leis para dizer que as migalhas de Lázaro precisam ser cortadas”
Hoje a sociedade brasileira tem diante de si decisões de gasto e de arrecadação. Para um povo que se diz cristão, as perguntas seriam simples. Contudo, há um exército de fariseus prontos a brandir suas 600 leis para dizer que as migalhas de Lázaro precisam ser cortadas, e que não lhes atrapalhemos o banquete. Os salários de juízes e parceiros foram preservados de cortes, mas o salário mínimo precisa diminuir. A imposição de imposto de renda para quem ganha mais de R$ 50 mil por mês precisa ser “cuidadosamente avaliada”. Caifás agradece!
Para mim o que Jesus mais combateu foi a hipocrisia. E quando falamos de quem paga e quem recebe serviços e recursos públicos, isso deveria ser bem claro a todos. Cuidado com o fariseu ao seu lado. E lembre de Jesus Cristo!
Feliz Natal!
(*) Economista e cientista político. Graduado na Unesp, tem mestrado pela Universidade de Siegen (Alemanha) mestrado e doutorado em Ciência Política (UnB e UERJ). Coordenador do Congresso em Foco Análise e professor do curso de Mestrado em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados. – [email protected]