A dependência de substâncias é hoje compreendida como uma doença cerebral que se desenvolve em pessoas geneticamente predispostas e expostas aos fatores de vulnerabilidade ambiental, como experiências traumáticas na infância. Esses e outros aspectos dessa tragédia pessoal, familiar e social, são abordados no artigo dessa semana pela doutora e professora Elisabete Castelon Konkiewitz.
Leia a íntegra:
Dependência de substâncias: uma tragédia pessoal, familiar e social
Elisabete Castelon Konkiewitz –
A dependência é um enorme desafio médico e social no século XXI. O número de acometidos e a diversidade de suas formas tendem a aumentar. Novas substâncias ilícitas são introduzidas no mercado e novas vias de acesso a elas são propiciadas às pessoas.
Estima-se que, no mundo todo, em 2019, cerca de 35 milhões de pessoas sofriam de transtornos de uso de substâncias, entretanto, somente uma em cada sete recebia tratamento.5 Outro registro alarmante mostra que, em 2017, o transtorno por uso de substância foi responsável por 585 mil óbitos no mundo.
Trata-se de um negócio altamente lucrativo e em constante expansão. Além das repercussões político-estruturais do crime organizado sobre a sociedade e a nação como um todo, o comportamento de dependência é, em si, devastador para a pessoa acometida e todo o seu entorno, levando-a a viver em um estado de distorção perceptiva, no qual o valor atribuído ao consumo da substância supera todos os demais aspectos de sua vida. Seu comportamento é aprisionado a um padrão compulsivo e repetitivo que resiste a tentativas de autocontrole e moderação.
Por isso, a dependência é hoje compreendida como uma doença cerebral que se desenvolve em pessoas geneticamente predispostas e expostas aos fatores de vulnerabilidade ambiental, como experiências traumáticas na infância. Em outras palavras, o uso de uma determinada droga não causa transtorno por uso de substância na maioria dos indivíduos e investigações recentes têm demonstrado fatores estatisticamente associados ao seu desenvolvimento, de modo que o componente genético não é entendido como determinante, mas como um fator de suscetibilidade que interage de forma dinâmica com os elementos do ambiente.
Uma vez estabelecida, a dependência gera alterações cerebrais significativas, tanto pela ação tóxica e neurodegenerativa da substância em questão, quanto pela neuroplasticidade de circuitos neurais associados à recompensa, à saliência, ao autocontrole, automonitoramento, definição de metas e organização de estratégias. Como consequência, a capacidade de autodeterminação vai se deteriorando, perpetuando um ciclo de autodestruição.
Segundo a Classificação Internacional de Doenças, a dependência é definida como um distúrbio de regulação decorrente do uso repetido ou contínuo. O traço característico é um forte impulso interno, que se manifesta pela capacidade prejudicada de controlar o consumo, aumentando a prioridade dada à substância sobre outras atividades e a persistência do uso apesar de danos ou consequências negativas. Essas características geralmente são evidentes por um período de 12 meses, porém o diagnóstico pode ser feito se o uso da substância for contínuo (diariamente ou quase diariamente) por pelo menos 1 mês.
A conceituação do transtorno por uso de substância como doença, embora com amplo respaldo científico, ainda encontra resistência na sociedade, pois configura uma mudança de paradigma que tira o usuário da posição de criminoso, ou indolente e o coloca como merecedor justo de assistência médica.
Ainda resta muito a ser feito. Além da elucidação dos circuitos envolvidos na origem e na manutenção da dependência, é preciso que se elaborem estratégias de detecção de risco e de prevenção na atenção primária e que se desenvolvam fármacos e técnicas psicoterápicas específicas e mais eficazes.
A dependência destrói biografias, famílias e representa um enorme ônus para as nações. Ela não pode ser vista como um problema individual, mas como uma ameaça a ser enfrentada pela sociedade coletivamente.
(*) Médica neuropsiquiatra douradense