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Elisabete Konkiewitz escreve sobre ciúme delirante: Síndrome de Otelo

Elisabete Castelon Konkiewitz –

A psicologia evolutiva defende que o ciúme foi conservado durante a evolução por ser, apesar de doloroso e potencialmente fatal, importante para a nossa sobrevivência e perpetuação. O argumento aqui é o de que o ciúme corresponde a uma habilidade cerebral que nos permite detectar o perigo de sermos abandonados e então elaborar estratégias para que isso não aconteça.

Quem afirma isso é a neuropsiquiatria Elisabete Castelon Konkiewitz que escreve, na coluna “Saúde e Bem-Estar desta semana, sobre o ciúme patológico e delirante, a “Síndrome de Otelo”.

Leia a íntegra do artigo:

Ciúme: a sombra do amor é o ódio

Quem disser que nunca sentiu ciúme está mentindo, pois trata-se aqui de uma experiência universal, que acompanha o homem em todas as idades e em todas as culturas. Bebês sentem ciúme, quando a mãe se volta para outra criança, mas engana-se aquele que associa este sentimento à imaturidade. De fato, na velhice ele pode ser tão intenso e dolorido como na primeira paixão da adolescência.

A dor do ciúme é violenta e marcante, encontrando expressão nas mais diferentes formas literárias— grandes épicos, tragédias, romances, novelas, cancioneiro popular, etc. Com histórias de aniquilamento, homicídio e suicídio, em todas as épocas, poetas e escritores registraram esta experiência de sofrimento e reconheceram seu papel central na determinação do nosso comportamento, das nossas ações e do nosso destino, criando versos, enredos e personagens que nos perfuram de imediato, trespassando todas as camadas de racionalidade, cultura e civilização com que nos revestimos.

Por que a sabedoria, a erudição, a lógica e a sensatez não nos imunizam contra esta emoção? Por que milhares de anos de evolução— que permitiram à nossa espécie tantas aquisições e tanto refinamento tecnológico, intelectual e estético— não fizeram surgir seres mais ponderados e menos ciumentos? Por que ainda permanecemos tão vulneráveis a esse arrebatamento que traz à tona o primitivo e o selvagem em nós?

A psicologia evolutiva defende que o ciúme foi conservado durante a evolução por ser, apesar de doloroso e potencialmente fatal, importante para a nossa sobrevivência e perpetuação. O argumento aqui é o de que o ciúme corresponde a uma habilidade cerebral que nos permite detectar o perigo de sermos abandonados e então elaborar estratégias para que isso não aconteça.

De fato, imaginando o homem pré-histórico, compreendemos que ele só sobreviveu aos inúmeros perigos e contingências do ambiente através da colaboração. Entretanto, a colaboração de longo prazo só persiste se houver formação de vínculos. Do contrário, por que permanecer junto e cuidar de um parceiro doente?

Assim, o amor e sua contraparte, seu gêmeo obscuro, sua sombra – o ciúme – são a essência que nos mantém unidos. O amor do homem fez com que ele não abandonasse, mas protegesse a mulher que havia parido seu filho, mas o amor trouxe também a consciência do risco de perdê-la, de ser rejeitado, de ser traído e cuidar da prole de outro homem. A mulher, por sua vez, precisava garantir a consideração especial do parceiro para assegurar o cuidado de si e dos seus descendentes. O ciúme como detector de ameaça foi e é assim fundamental para a organização e manutenção do arcabouço social.

Apesar das considerações acima, o que de fato se vê é o ciúme agindo como elemento de conflito e ruptura. Se, por um lado, ele parece acompanhar o amor, sua verdadeira essência é o ódio – o ódio ao rival e o ódio à rejeição. Por isso, as escrituras de diferentes religiões defendem que o verdadeiro amor, ao contrário do apego, é liberto e paira acima dessa emoção.

A psiquiatria reconhece o ciúme obsessivo, que se caracteriza pela sua intensificação doentia e exige tratamento. Tipicamente os comportamentos são de checagem, questionamentos e buscas repetidas, gerando discórdias frequentes e um ciclo de tormento e perseguição.

O paciente, mesmo entendendo que suas reações são exageradas, não consegue mudar. Sabe-se que o ciúme obsessivo não se relaciona tanto com o comportamento do parceiro, mas principalmente com a autoconfiança e autoimagem do paciente, que, por sua vez, dependem da sua história de vida.

Pessoas que tiveram vínculos estáveis na infância, que se sentiram amadas, queridas e desejadas tornam-se adultos mais seguros e menos desconfiados. Do contrário, aqueles que cresceram sem o sentimento de poder acreditar e se entregar aos cuidados de alguém que o ama, tornam-se pessoas amedrontadas que tendem a detectar sinais inócuos como ameaçadores.

Assim, o processo terapêutico consiste na construção de uma autoimagem positiva e estável e no reconhecimento e superação de fantasias e crenças que geram medo.

Outra situação na prática psiquiátrica é a síndrome de Otelo, ou ciúme delirante. Trata-se aqui de uma distorção completa da percepção da realidade, ou seja, da elaboração de uma crença irreal que, porém, resiste a todas as demonstrações e evidências do contrário.

O paciente constrói uma convicção inabalável que pode até mesmo se acompanhar de alucinações. Não é possível argumentar e discutir com ele a situação. A síndrome de Otelo exige investigação médica, pois, em até 30% dos casos, é resultante de uma doença cerebral, como tumor, traumatismo cranioencefálico, doença de Alzheimer, doença de Parkinson, uso de álcool, ou cocaína, dentre outras. Aqui, a psicoterapia fornece um apoio, mas o tratamento é necessariamente medicamentoso e voltado para a doença de base.

Enfim, nós somos animais ciumentos e isso não podemos mudar, mas é preciso manter a guarda e não deixar que esse “monstro de olhos verdes” destrua o que mais amamos.

(*) Médica neuropsiquiatra douradense

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