Em 22 de novembro de 2023, o tekoha Pyelito Kue/Mbaraka’y, no município de Iguatemi, no cone sul do Mato Grosso do Sul, sofreu um ataque de fazendeiros e capangas. Um violência que feriu ao menos dez Guarani e Kaiowá, incluindo uma gestante, além de ter mantido por vários dias três indígenas desaparecidos.
Há alguns quilômetros da Terra Indígena, a antropóloga e cineasta Carol Mira e o jornalista e fotógrafo Renaud Phillipe acompanhavam a Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, quando receberam a notícia do ataque no Pyelito.
Desde janeiro de 2022 os documentaristas estavam em imersão nas retomadas Guarani do Mato Grosso do Sul e do oeste do Paraná para a produção de um fotodocumentário. Seguiram imediatamente para Iguatemi, com o objetivo de registrar a investida contra os Guarani e Kaiowá, o que para ambos não se tratava de algo novo.
Na rodovia MS-386, que dá acesso à área indígena, menos de uma hora depois de serem abordados pelo Departamento de Operação de Fronteiras (DOF), os documentaristas encontraram a estrada bloqueada por caminhonetes. Homens encapuzados e armados os fizeram descer do veículo para iniciar uma série de espancamentos em Renaud, ameaças e agressões a Carol, tortura psicológica, além de roubo e destruição de equipamentos.
Uma viatura da Polícia Militar passou pelo local no momento da violência, mas os policiais nada fizeram. Carol e Renaud conseguiram fugir. Voltaram para a Aty Guasu, tiveram a ajuda da Defensoria Pública Estadual (DPE), prestaram depoimentos para Polícia Civil de Amambai e, dias depois, para a Polícia Federal de Ponta Porã. O caso teve repercussão nacional e internacional, mas segue impune.
“Vimos o mecanismo de como a impunidade acontece. A Polícia Federal declarou que não era conflito envolvendo indígenas, que não era conflito fundiário e que não foi em terra indígena. Fato é que o episódio envolve diretamente a questão indígena. Inclusive quando nos agrediram, eles me xingaram de vagabunda de ONG. A gente pensa: toda a visibilidade que teve, com um norte-americano envolvido, e segue impune. Imagina com os Guarani e Kaiowá”, reflete Carol.
Como a própria antropóloga e cineasta ressalta, a violência não os impediu de ir ao encontro dos indígenas em Pyelito Kue/Mbaraka’y. Ao contrário: o episódio deu ainda mais forças para que os documentaristas prosseguissem com o trabalho conduzindo-o ao livro Retomada (Four Eyes editions), um fotodocumentário que retrata a luta desses povos e pode ser definido como “um apelo à ação”, nas palavras de Renaud.
O livro conta com 216 páginas e é composto por fotografias e palavras coletadas nas retomadas, que contam a beleza, a poesia e a resiliência do povo Guarani, bem como a luta que eles travam para recuperar suas terras da agroindústria em uma região do Brasil onde as monoculturas se estendem até onde a vista alcança.
“Ao longo das nossas estadias, aos poucos percebemos que essa história foi também o de uma luta ambiental, uma luta contra a violência de um capitalismo que se tornou a norma, um exemplo para toda a humanidade”, diz o jornalista e fotógrafo
Retomada: o livro
Para além de toda a violência que cerca os indígenas e seus aliados, os encontros não foram apenas regidos pela maneira como a colonialidade capitalista opera na questão indígena. Em toda a sua generosidade, as comunidades receberam os documentaristas e entregaram a eles seus momentos familiares mais sutis, o dia a dia de desafios, o ritmo de vida menos acelerado e a profunda espiritualidade que os habita. Toda essa vivência está expressa no livro em uma jornada visual que trata de um recurso que mobiliza a luta indígena no Brasil: a retomada.
A pré-venda do livro, um mecanismo de comprometimento coletivo para que ele exista, vai ajudar a financiar a impressão. A edição será bilíngue, em inglês e francês, mas terá uma versão em português.
Após o lançamento, a obra será distribuída nas comunidades com as quais os autores trabalham e àquelas com as quais pretendem se encontrar no futuro. O apelo à ação proporcionará novos encontros a Carol e Renaud.
Leia os principais trechos da entrevista com Carol Mira e Renaud Phillipe:
Carol Mira e Renaud Phillipe, autores de Retomada, em 22 de novembro de 2023, logo após episódio de violência sofrido por ambos. Foto: Arquivo/Cimi
A ideia do livro veio antes ou depois do encontro com os Guarani no Paraná e Mato Grosso do Sul. Eu quero dizer, vocês chegaram aos territórios sabendo que o trabalho seria focado nas retomadas?
Carol – Antes de pensar nas retomadas em si, enquanto um grande movimento de luta (para além do espaço físico), a gente se focou bastante na resistência presente nessas retomadas, seja diante das violações de direitos, seja diante das inúmeras formas de violência. Se me lembro bem, essa era nossa ideia de base, mas só quem de fato poderia nos mostrar o que era realmente importante eram os próprios indígenas. E foi assim que aconteceu: fomos sempre guiados por eles.
Renaud – Sim, Carol trabalhou na comunidade Y’Hovy (Terra Indígena Guasu Guavirá, povo Avá Guarani) por vários anos e conhecia bem a realidade da retomada. Decidimos juntos em 2020 documentar essa luta.
Há uma responsabilidade intrínseca ao papel do fotógrafo documental, a de partilhar o que nos foi confiado. As notícias correm rapidamente, as informações veiculadas na mídia tradicional são efêmeras. O livro foi necessário por diferentes razões.
Porque fotografar em um contexto de injustiça é fazer uma promessa: dar testemunho. Então, nós vamos até o fim. Para afirmar a importância da fotografia engajada, diz Renaud
Por que fazer um livro?
Renaud – Para quebrar a invisibilidade imposta a um povo inteiro que, até hoje, sofre as consequências da violência do colonialismo, agora perpetuada por um capitalismo sem remorso.
Para retribuir à comunidade. Para transformar este trabalho em uma ferramenta. Forneceremos uma cópia, incluindo uma tradução em português, para cada uma das comunidades com as quais trabalhamos, bem como para as organizações que lutam incansavelmente para defender seus direitos. Enviaremos para todos os lugares onde possa causar impacto. Pela profundidade do projeto e pelas conexões que ele criou. Para garantir sua longevidade.
Para ir contra a maré do mundo da mídia, recuar, escolher lentidão e profundidade, priorizar conexões humanas em vez de lucratividade. Porque fotografar em um contexto de injustiça é fazer uma promessa: dar testemunho. Então, nós vamos até o fim. Para afirmar a importância da fotografia engajada.

Quanto tempo vocês levaram em campo para levantar o conteúdo do livro? Vocês sabem dizer quantas retomadas visitaram?
Carol – Começamos este projeto em janeiro de 2022 e visitamos 25 retomadas nos estados do Paraná e Mato Grosso do Sul. Retornamos a algumas dessas comunidades diversas vezes. Este livro retrata principalmente dois povos: Guarani Kaiowá e Avá Guarani, mas também visitamos duas comunidades Mbya Guarani.
Eu já havia realizado trabalhos com a comunidade da Tekohá Y’Hovy, uma retomada Avá Guarani no oeste do Paraná, desde 2015, mantendo desde aquela época amizades e conexões. Quando começamos este projeto conjunto, eu e Renaud iniciamos pela Y’Hovy e, primeiramente, expandimos para outras retomadas na região oeste do Paraná.
Nossos amigos e lideranças da região, em especial Ilson Soares e Vicenta Benites, se engajaram no projeto e nos guiaram nesses primeiros passos. Depois, foi se formando uma rede de relações, na qual as lideranças e comunidades começaram a nos convidar para registrar a realidade de suas aldeias, escutar os testemunhos da comunidade e passar um tempo com eles.
Foi assim que o projeto foi sendo construído, através de uma colaboração ativa com as comunidades e de uma rede de relações em constante expansão, explica Carol
Foi a partir de uma assembleia geral Avá Guarani na cidade de Guaíra, em agosto de 2022, que conhecemos nosso outro grande amigo e parceiro de trabalho, Daniel Lopes Vasques, historiador e professor Guarani e Kaiowá. Ele nos alertou para o recém-ocorrido massacre de Guapoy, em Amambai.
No dia seguinte, estávamos pela primeira vez no Mato Grosso do Sul, conversando com todos os feridos de Guapoy e com o filho de Vitor Fernandes, assassinado durante o massacre.
No Mato Grosso do Sul ocorreu o mesmo processo que no Paraná, uma rede de conexões e colaborações começou a se estabelecer. Então, este projeto aconteceu através de muito trabalho coletivo, de muita colaboração, mas também do acaso e dos encontros que surgiram no caminho.
Como se deu a articulação das especialidades de vocês, ou seja, uma antropóloga e um jornalista, ambos com atuação no cinema e fotografia, respectivamente, para construir a abordagem ao tema?
Carol – Foi de uma maneira bem orgânica. Nós partilhamos uma visão da fotografia e do cinema enquanto dispositivos de encontro, então nos deixamos guiar pelos encontros, pelas partilhas, pelas experiências. Interessante mencionar que absolutamente em todas as vezes que estávamos nas retomadas algo extraordinário aconteceu “por acaso”.
São diversos exemplos, testemunhamos tantos momentos importantes que vão desde o momento de uma nova retomada, perpassando a última reza de uma anciã, reuniões importantes… foram tantos momentos. Até encontrar com uns 30 milicianos mascarados no caminho a gente encontrou.
Renaud – Naturalmente. É sobretudo um trabalho humano de um casal que gravita no universo social desde sempre. Acesse o trabalho na reunião, sem um plano de jogo definido. São as comunidades que escolheram as histórias que compartilhamos, que nos trouxeram para a cena que documentamos. Este projeto foi construído com eles.

O cone sul do MS foi chamado de a Faixa de Gaza brasileira pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. O oeste do Paraná não é diferente. Como foi vivenciar tais realidades?
Carol – Ouvimos isso algumas vezes no estado do MS. Essa questão me fez lembrar de quando realizei oficinas de cinema numa retomada, em 2015, e assistimos repetidas vezes o filme palestino “5 câmeras quebradas”. Os próprios Avá Guarani reconheciam fortemente e sei que muitos Guarani e Kaiowá reconhecem as similaridades das lutas e dos genocídios em curso.
Renaud – Magnífico, através dos encontros humanos que tivemos entre os comunidades que nos receberam de braços abertos.
É difícil comparar as questões que afetam diferentes regiões do mundo, mas muito certamente a lógica que se aplica contra os Guarani no Brasil é genocida, todos os testemunhos que recolhemos apontam nessa direção.
Diante deles não há apenas os agricultores e as suas milícias, mas também os políticos e a polícia de uma sociedade capitalista que se destroi ao destruir o futuro dos seus próprios filhos, destruindo a natureza e poluindo o solo com fertilizantes químicos.
Como era o dia a dia de vocês nas retomadas? Essa convivência com os Guarani ajudou a compor a narrativa do livro de que maneira?
Carol – Nossos dias nas retomadas sempre oscilaram entre calma e intensidade. Tinham os momentos de escuta, os momentos de grandes caminhadas para conhecer cada parte da aldeia, tinham os momentos de espera, outros de espiritualidade…
O tempo é sempre um aliado, quanto mais tempo a gente podia dedicar a uma retomada, mais da vida cotidiana era possível acessar, mais laços eram criados.
O projeto que resultou nesse livro foi todo guiado pelos Avá Guarani e pelos Guarani e Kaiowá. O livro combina fotos e testemunhos que ecoam como uma grande voz coletiva, respeitando as particularidades de cada história e contexto, mas que unidas, se tornam ainda mais fortes.
Não é um livro explicativo, ao meu ver é muito mais uma experiência através dos sentidos, que retrata a resistência, a riqueza e a beleza dessas comunidades e de suas lutas, diz Renaud
Retomada Guapoy, Amambai (MS), fevereiro de 2023. Foto: Renaud Philippe/projeto Retomada da Terra
Quais situações de maior gravidade vocês testemunharam os Guarani enfrentando durante o período em campo? Vocês chegaram a ver novas retomadas acontecendo?
Carol – A situação mais grave que testemunhamos presencialmente foi em Pyelito Kue, em Iguatemi/MS, em novembro de 2023. Eles tentaram retomar um pedaço do território (já delimitado há mais de 10 anos, sem avanços na demarcação) e sofreram dias de tortura e de ataques terríveis.
Infelizmente, a questão da violência é bem recorrente. Mesmo através do telefone, por exemplo, estamos sempre recebendo informações das comunidades sobre ataques, atropelamentos, suicídios, feminicídios e abusos sexuais…
A sensação sempre se divide entre tentar ajudar de alguma forma realizando mil contatos para depois sentir uma impotência absurda sobre toda essa violência e sua sempre total impunidade.
Nós também acompanhamos os primeiros dias da retomada de Laranjeira Nhanderu, por acaso.
Mas o mais grave é a escala da coisa. Não se trata de um evento isolado aqui e ali no território, mas de um sistema que está em vigor, analisa Renaud
Não quero fazer com que revivam a violência que sofreram durante o trabalho, amplamente repercutida, mas em que medida o episódio influenciou a produção do livro? Vocês tiveram que reduzir o tempo de campo? Houve alguma repercussão judicial ou caiu na impunidade como é de costume no MS?
Carol – Nosso primeiro e maior engajamento é com as comunidades das retomadas, que enfrentam cotidianamente inúmeras formas de violência, da mais estrutural à mais física.
Uma outra violência imposta é a invisibilidade desta luta e destas violações de direitos sofridas. No exterior, por exemplo, há um maior desinteresse em histórias fora da região amazônica, e no Brasil, os Guarani são sistematicamente tratados como invasores pela grande mídia…
Então, voltando à questão, é interessante analisar que nos atacaram por sermos comunicadores, que roubaram e queimaram nossos equipamentos, é simbólico isso… o que eles queriam esconder?
Enfim, caiu na impunidade. A Polícia Federal disse que não era da competência deles, denotando que “não foi conflito relacionados aos indígenas”, disseram ter passado para a Polícia Civil de Amambai, que ainda não havia recebido o processo… e por aí sabemos como vai.
A gente voltou a campo seis meses depois, com o Programa de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos (PPDDH). Conseguimos chegar até Pyelito Kue e ir em algumas outras retomadas, mas com muito mais restrições como não trabalhar durante determinados horários, etc.
Mas a gente não desistiu, voltou e foi até Pyelito Kue, a gente não deixou eles vencerem, o nosso encontro com a comunidade aconteceu, lembra Carol
Renaud – Isso nos deu uma força sem precedentes para continuar o trabalho. Ao querer silêncio, eles fizeram exatamente o oposto. Para nós foi apenas efêmero, para os Guarani é diário.
Barraco ao sol em retomada Guarani Kaiowá no Tekoha Laranjeira Nhanderu, Rio Brilhante (MS). Março de 2023. Foto: Renaud Philippe/projeto Retomada da Terra
O livro será lançado em francês, no Canadá. Como vocês avaliam o interesse estrangeiro pela questão indígena no Brasil e como o livro se insere nesse cenário?
Renaud – O livro será publicado por uma editora francesa (Four Eyes editions), especializada em fotografia do autor. É antes de tudo um livro fotográfico, e a cultura da fotografia na Europa garantirá uma ampla distribuição.
No Canadá criamos ligações com numerosas comunidades indígenas, que à sua maneira também lutam para a preservação do território. Um autor indígena está escrevendo um texto falando da internacionalização da luta.
A luta indígena é universal e constitui o futuro da humanidade, estamos convencidos disso, ainda mais por conta do projeto Retomada.
O interesse pelas causas indígenas, num mundo dividido, é muito importante nos seus componentes liberais, cada vez mais conscientes do drama histórico da colonização, também consciente de que a humanidade deve trabalhar para retornar a um mundo de vida que possa garantir a sua sobrevivência e a de outras espécies.