José Henrique Marques e Juliel Batista –
Redes Sociais e política nunca estiveram tão próximas como nas últimas décadas, mas isso vem se tornando alvo de muitas polêmicas. Em Dourados, não é diferente, onde as pessoas se informam cada vez mais por meio das grandes plataformas digitais, que são usadas por boa parte da classe política para informar e se posicionarem junto aos seus eleitores.
Nesse cenário, a Folha de Dourados procurou o advogado Felipe Torquato Melo, especialista em Direito administrativo, para esclarecer sobre o papel contemporâneo da imprensa, das redes sociais e dos aplicativos de mensagens, do atual arcabouço jurídico brasileiro, das fake news e a relação entre o poder público e população.
O advogado pontuou que a desinformação e o discurso de ódio não são exclusividade do Brasil, pelo contrário, afeta as grandes democracias liberais do mundo, e que do jeito que a situação está, a legislação precisa urgentemente ser alterada. Para ele, as redes sociais mal usadas, aumentam os crimes, por exemplo, contra a honra.
Ao comentar sobre o papel da fiscalização dos vereadores, como o caso de Isa Marcondes (Republicanos), Felipe Torquato ressalta que “a fiscalização do município deve obedecer ao que determina Constituição (art. 31), que estabelece que o controle externo é feito pelo Legislativo, enquanto o controle interno cabe ao próprio Executivo.”
De acordo com ele, “a crítica ao serviço público, por si só, não é crime. O debate público é legítimo e faz parte da democracia. No entanto, toda pessoa tem o direito de ser tratada com respeito. Quando uma manifestação ultrapassa esse limite, atingindo a honra, o bom nome de alguém ou perturbando a ordem do serviço público, pode configurar um ato ilícito.
“Para apurar quebra de decoro parlamentar, deve-se fazer uma representação na Câmara Municipal. Se houver crime, como abuso de autoridade, ameaça ou assédio, deve-se procurar a polícia ou o Ministério Público”, diz o advogado.
Confira a entrevista na íntegra:
Folha de Dourados – Com o advento da internet a maioria da população se informa através das redes sociais. E como não poderia ser diferente, os políticos as utilizam na comunicação com o eleitorado. Nesse sentido, gostaria de perguntar ao senhor: a legislação e as ferramentas disponíveis são suficientes para combater as mentiras que são difundidas nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens?
Felipe Torquato – A desinformação e o discurso de ódio são problemas que afetam não apenas o Brasil, mas diversos países, o que evidencia que a legislação e as ferramentas disponíveis atualmente são insuficientes para enfrentar esse desafio. No Brasil, a estagnação do debate político tem levado à judicialização do tema. Mais recentemente, o STF tem discutido a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet no âmbito do tema 987 da repercussão geral, debatendo a possibilidade de responsabilização civil das plataformas digitais por conteúdos ilícitos publicados por terceiros.
“A desinformação e o discurso de ódio são problemas que afetam não apenas o Brasil (…) o que evidencia que a legislação e as ferramentas disponíveis atualmente são insuficientes”
Folha de Dourados – Neste imbróglio envolvendo redes sociais, aplicativos de mensagens e fake news, a imprensa tradicional vem perdendo cada vez mais espaço. O que fazer? Isso preocupa?
Felipe Torquato – Preocupa que o ódio e a mentira são fundamentais no modelo de negócio baseado em algoritmos das redes sociais. De outro lado, imprensa sempre foi o principal espaço de validação das informações. Os momentos mais importantes do mundo contemporâneo foram noticiados pelo jornalismo profissional, enquanto a mentira sempre foi aliada de regimes autoritários. A imprensa presta um dos serviços públicos mais essenciais para a democracia, e por isso é tão atacada. O financiamento público e iniciativas como a lei aprovada na Austrália, que obriga as big techs a remunerar o jornalismo profissional, ajudam a preservar esse papel.
“Os momentos mais importantes do mundo contemporâneo foram noticiados pelo jornalismo profissional, enquanto a mentira sempre foi aliada de regimes autoritários”
Folha de Dourados – Estaria havendo uma espetacularização da política ou a internet potencializou essa prática demagógica?
Felipe Torquato – A espetacularização da política não surgiu com a internet; sempre existiu, antes pela TV e, mais remotamente, pelo rádio. O problema central é a baixíssima qualidade do debate político, que agrava a crise da democracia liberal.
“O problema central é a baixíssima qualidade do debate político, que agrava a crise da democracia liberal”
Folha de Dourados – O surgimento e a difusão da internet deram voz a toda sociedade conectada. Mesmo com legislação específica ainda, digamos, precária, em que crimes já previstos em leis ordinárias, o cidadão pode incorrer?
Felipe Torquato – Em relação ao cidadão, não há dúvidas sobre sua responsabilização. Todos os crimes que ele poderia praticar no mundo real, em parte, também podem ser cometidos na internet. A diferença está na escala do dano: antes, esses crimes tinham um alcance local, enquanto hoje atingem o mundo inteiro. No entanto, o debate atual não gira em torno das penas aplicáveis ao cidadão, mas sim da responsabilidade das plataformas e redes sociais que permitem a disseminação desses crimes.
“(…) o debate atual não gira em torno das penas aplicáveis ao cidadão, mas sim da responsabilidade das plataformas e redes sociais que permitem a disseminação desses crimes”
Folha de Dourados – A propósito, recentemente, o senhor postou vídeos tratando de assédio moral ao funcionalismo público através das redes sociais. O que o preocupa?
Felipe Torquato – O que me preocupa é que, para uma denúncia séria, são necessárias provas, senão ela é arquivada. No tribunal da internet, não é preciso provar nada, e esse é o problema. Reputações são destruídas de forma irreversível, não existe direito de defesa. Além disso, esses ataques ao funcionalismo raramente buscam uma verdadeira fiscalização. Na maioria das vezes, são ferramentas de um jogo perverso da política, onde o objetivo não é melhorar o serviço público, mas ganhar likes, monetizar ou alcançar um ganho político.
” (…) esses ataques ao funcionalismo raramente buscam uma verdadeira fiscalização. Na maioria das vezes, são ferramentas de um jogo perverso da política (…)”
Folha de Dourados – O fato de populares e de lideranças políticas se manifestarem contra o serviço público é crime?
Felipe Torquato – A crítica ao serviço público, por si só, não é crime. O debate público é legítimo e faz parte da democracia. No entanto, toda pessoa tem o direito de ser tratada com respeito. Quando uma manifestação ultrapassa esse limite, atingindo a honra, o bom nome de alguém ou perturbando a ordem do serviço público, pode configurar um ato ilícito.
“O debate público é legítimo e faz parte da democracia. No entanto, toda pessoa tem o direito de ser tratada com respeito”
Folha de Dourados – A vereadora Isa Marcondes (Republicanos) vem denunciando a precariedade do serviço público oferecido em Dourados, notadamente, na saúde, desde a pré-campanha do ano passado. Por um lado, ela agrada o usuário do SUS, mas, por outro, desagrada médicos, o pessoal da enfermagem e do administrativo do Hospital da Vida e da UPA, além da diretoria da Fundação de Saúde de Dourados. A vereadora tem ultrapassado os limites?
Felipe Torquato – A fiscalização do serviço público é uma função essencial do legislativo, e apontar problemas na saúde pública é legítimo. No entanto, a crítica deve ser feita com responsabilidade e respeito aos profissionais que atuam em condições muitas vezes precárias.
Se a vereadora expõe falhas com base em fatos, sem generalizações ou ataques pessoais, está cumprindo seu papel. Mas se as manifestações desqualificam profissionais, incitam perseguição ou desinformação, aí sim podem ultrapassar os limites e gerar algum tipo de responsabilização.
O SUS é um dos maiores sistemas de saúde do mundo e funciona graças ao trabalho incansável de médicos, enfermeiros e administrativos. Se há precariedade, o problema é de gestão pública, e o foco do debate deve ser em soluções, não em expor ou desmerecer quem mantém o sistema funcionando.
“Se a vereadora expõe falhas com base em fatos, sem generalizações ou ataques pessoais, está cumprindo seu papel”
Folha de Dourados – Então, vereadores, no uso da prerrogativa do cargo, podem adentrar em todas as dependências de uma unidade de saúde sem a devida autorização? Como deve ser essa fiscalização?
Felipe Torquato – Com exceção das áreas de livre circulação, o vereador não tem prerrogativa de adentrar nas dependências de nenhuma repartição pública do Poder Executivo sem autorização da chefia ou ordem judicial. Isso viola a separação dos poderes (art. 2º, CF).
“Com exceção das áreas de livre circulação, o vereador não tem prerrogativa de adentrar nas dependências de nenhuma repartição pública do Poder Executivo sem autorização da chefia ou ordem judicial”
A fiscalização do município deve obedecer ao que determina Constituição (art. 31), que estabelece que o controle externo é feito pelo Legislativo, enquanto o controle interno cabe ao próprio Executivo. Ou seja, o poder de fiscalização legislativa não é do vereador, mas, sim, dos órgãos coletivos de cada câmara; nunca, aos seus membros individualmente, salvo, é claro, quando atuem em representação de sua Casa ou comissão (ADI 3046). Para que fique bem claro: vereadores não podem atuar diretamente dentro das repartições do Executivo, pois isso invade a esfera de outro poder.
Tradicionalmente o legislativo faz a análise e aprovação das contas públicas com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado (art. 18, VII, LOM). A Lei Orgânica do Município também permite a requisição de informações sobre qualquer assunto da administração (art. 18, VIII e XVII, LOM). No ano passado (2024), a Câmara Municipal de Dourados alterou a Lei Orgânica para incluir a possibilidade de convocar autoridades do executivo para prestar esclarecimentos, como já acontece nos âmbitos estadual e federal (art. 271, LOM).
A Lei nº 4.693/2021, que tenta garantir livre acesso irrestrito aos vereadores, é inconstitucional, pois viola a separação dos poderes, e várias leis semelhantes já foram derrubadas no Brasil.
Além disso, invadir áreas restritas ou produzir provas de maneira ilegal são crimes de abuso de autoridade (art. 22, 25, 28 e 33, Lei nº 13.869/2019) e podem configurar quebra de decoro parlamentar, o que pode levar a um processo de cassação do mandato.
Folha de Dourados – No plano institucional, em Dourados, quem deve denunciar ao Ministério Público eventuais abusos de autoridade de parlamentar: a Câmara ou a unidade de saúde?
Felipe Torquato – Qualquer interessado pode levar a notícia de um suposto crime ao conhecimento da autoridade policial, do Ministério Público ou da própria Câmara Municipal. O importante é que toda denúncia seja feita com responsabilidade e dentro dos canais institucionais, evitando a espetacularização em redes sociais.
“Qualquer interessado pode levar a notícia de um suposto crime ao conhecimento da autoridade policial, do Ministério Público ou da própria Câmara Municipal.”
Folha de Dourados – O funcionário público eventualmente assediado moralmente também pode denunciar, né, e para quem?
Felipe Torquato – Sim, o servidor público que for assediado por um vereador tem diferentes caminhos para buscar a devida responsabilização. Para apurar quebra de decoro parlamentar, ele deve fazer uma representação na Câmara Municipal. Se houver crime, como abuso de autoridade, ameaça ou assédio, ele deve procurar a polícia ou o Ministério Público. Para crimes contra a honra (calúnia, injúria ou difamação) e para pedir indenização por assédio moral, o servidor precisará contratar um advogado.
“o servidor público que for assediado por um vereador tem diferentes caminhos para buscar a devida responsabilização.”
Folha de Dourados – Suas considerações finais.
Felipe Torquato – Infelizmente, não recebemos educação política adequada. No Brasil, há uma cultura de desprezo pelo que é público, como se tudo que pertence ao Estado fosse sinônimo de ineficiência, quando, na verdade, são os serviços públicos que sustentam a sociedade, garantindo saúde, educação e segurança.
A fiscalização do serviço público deve ser feita com seriedade e dentro da legalidade, sem abuso de prerrogativas ou espetacularização. O respeito entre os poderes e aos servidores que mantêm o sistema funcionando é essencial para que qualquer crítica resulte em melhorias reais, e não em perseguições ou desinformação.
“No Brasil, há uma cultura de desprezo pelo que é público, como se tudo que pertence ao Estado fosse sinônimo de ineficiência (…)”