Eduardo Martins, docente adjunto 4, junto ao curso de História, UFMS, Nova Andradina.
Hägaté te tahfwa
Estive ontem (7/11/24), com uma das grandes lideranças indígenas e literato Daniel Munduruku que me falou, me alertou, sobre a responsabilidade que temos com o planeta, com a natureza como um corpo orgânico que temos que cuidar. Falou sobre o cuidado com a memória.
Falou da ancestralidade que vive não no passado, mas no presente; não no presente do tipo ocidental, tampouco na noção de futuro capitalista do acúmulo de coisas em detrimento à natureza; mas falou da temporalidade indígena – onde só o tempo presente interessa, dado que o passado não volta mais e o futuro é uma construção do aqui e agora, em sintonia com a imensidão da natureza, do tempo e ritmo dela; das fases da lua e das estações do ano, que não adianta apressar a natureza, porque ela não dá saltos. Assim como a vida humana, nós animais humanos somos os únicos entre nossos parentes da floresta e das matas que precisamos destruir vida para o nosso bem viver, destruir a vida animal e vegetal para alimentar nosso prazer e egoísmo. Falou do tempo cíclico, ao modo da natureza; que nasce, se desenvolve, dá flor, frutos, morre e torna a germinar, continuamente.
Uma onça ensinada ancestralmente por sua mãe ou sua alcateia, será capaz de sobreviver com seus recursos e instintos animais puros e somente e se bem atenta e adaptada à natureza viverá por muito tempo, reproduzirá a espécie e tornará a ensinar sua prole. Assim, devia se comportar a vida humana, em simbiose com a natureza, compondo o ambiente com a fauna e flora, considerando todo o ambiente como o meio de viver. E não o meio ambiente a ser destruído como o modelo ocidental.
Qual a função cumpre nosso colossal monumento Ofaié, construído, e instalado no coração da cidade de Nova Andradina? A de nos lembrar, que houve outro tipo de sociedade aqui, antes do avanço agropastoril, antes da expansão contra essas terras e pessoas ancestrais. Para que não nos esqueçamos de que a vida aqui não começou como tal do “pioneiro”, conceito eurocêntrico, inventado pelo invasor para tomar as terras das populações originárias, sob o véu de termos como “aquisições”, “expansão”, “desbravamento”, entre outras palavras mágicas aos ouvidos colonialistas não indígenas. Muito antes a vida jorrava aqui entre rios e mel.
Escrever história é lutar! Não somos historiadores/as se não tomamos o lugar do colonizado (oprimido). Não basta narrar é preciso (des)escrever dores, sofrimentos, lutas, resistências e protagonismos dos “de baixo”. Não basta fazer ciência; ela tem que vir com fricção, às vezes, sangrando. Tem que ter utopia selvagem, amor e fúria, senão não se escreve história não. O resto é biografia de colonizadores e, para isso não é necessário ser Historiador/a qualquer um escreve pastiche; advogados, médicos, engenheiros, jornalistas e demais diletantes. A História é séria, “o mar da História é agitado”, já dizia o poeta. À História necessita ser decolonial; ou não é História. Ou a história é sobre os direitos humanos para as populações colonizadas ou é paródia.
Então, o colossal monumento Ofaié cumpre a função de guardião da nossa memória ancestral, cumpre também dizer que o povo indígena Ofaié tem sua História inscrita/escrita nessa terra, quando decidimos fazer uma homenagem ao povo indígena que aqui nessas terras habitou ancestralmente, deixando suas pegadas. Só depois houve um contato contra os não indígenas com o seu olhar “empreendedor”, com outro ritmo de produção, outra maneira de estabelecimento de contato com a natureza; com a exuberante floresta que aqui nós tínhamos, a isso eles chamavam de progresso, de civilização e de “colonização”. Ora, mas o colono já morava por aqui, essas terras já eram cultuadas, cultivadas e mitificadas; pequenas hortas, agricultura familiar, criação, domesticação e fraternidade entre os animais de pequenos e médios portes, ora para o consumo, ora para amizade.
Fraternidade entre a fauna e a flora. Amplo (re)conhecimento de todos esses rios, córregos, domínio total das árvores e plantas frutífera e medicinais ou ornamentais – cores, cheiros, sabores. Tudo isso baseado no ancestral na sabedoria dos anciãos que iam transmitindo, por meio da educação, como é o bem viver; ensinando criança a ser criança – nunca esperando ela crescer para “ser alguém na vida”, para a pedagogia indígena a criança é criança. E, no futuro, ela será adolescente, mais tarde homem/mulher e, finalmente, um ancião da aldeia em educador/a da alma, contador de histórias.
O povo Ofaié que aqui habitou, até recentemente, no ano de 1948, quando o casal Darcy Ribeiro e sua esposa Berta moraram com eles nas barrancas do Ribeirão Samambaia, quando ainda vigia o Decreto 683, de 20 de novembro de 1924, assinado pelo vice-governador do Estado Dr. Estevão Alves Corrêa, que lhes reservou essas terras onde hoje é Nova Andradina. Terras essas que foram solicitadas pelo Marechal Rondon, pelos bons serviços prestado a ele pelos indígenas Ofaié, quando o Marechal passou por aqui, lá pelos anos de 1900.
Evidentemente, que o fenômeno colonialista e colonizador, têm a função de colonizar a terras, colonizar a floresta e os animais e também colonizar os corpos dos indígenas. Não à toa nosso Marechal Rondon também é homenageado em Nova Andradina, como nome de uma Escola Estadual, para que não nos esqueçamos que foi dele a iniciativa da reserva dessa terras para os indígenas Ofaié. Também as pegadas deixadas no bairro Laranjal extensão o aldeamento do Serviço de Proteção aos Indígenas (SPI), Laranjalzinho, onde hoje é a usina Santa Helena, nos anos de 1912 até 1924, morando ali cerca de 200 pessoas Ofaié. Impossível essas pessoas não terem tido contato/confronto com as máquinas e homens da empresa Moura Andrade. Darcy Ribeiro vai dizer que tiveram.
Desde 1492, quando o primeiro invasor colocou os pés nessas terras que, completamente “perdido”, chamou os donos delas de “índios”, num total desrespeito e ignorância. Movido pela ambição “empreendedora”, tirar o máximo da fauna e da flora e levar para a Europa; para isso escravizando a população originária.
Já no final do século XIX e começo do XX, o mesmo fenômeno aconteceu com a chegada dos invasores aqui nessas terras do lado Sul do antigo Mato Grosso, Vale do Ivinhema. Foram invadindo e, depois sob a narrativa ocidental de “aquisição” das terras foram se dizendo donos delas.
Evidentemente, com o confronto fatal entre as visões de mundo e de acumulação mesquinha dos não indígenas arrancando todas as florestas e matas, habitação dos Ofaié, contra uma sabedoria que tentava entender o que estava acontecendo; por que estavam cortando todas as árvores? Matando todos os bichos? Acabando com a vida?
Os Ofaié viviam em comunhão, como referência a partilha, troca, compromisso. A vida que nos é imposta por uma invisível mão universal só tem sentido quando é compartilhada com os outros seres que habitam esse planeta no qual nos movemos. A palavra comunhão faz lembrar outra que gosto muito; companheiro. Significa aquele que partilha comigo o mesmo pão. Uma sociedade em que as crianças são apenas crianças, os jovens apenas jovens, adultos plenamente adultos e os idosos são referências para os mais jovens. Uma sociedade-teia. Fazem isso porque sabem que não se pode dividir a vida entre festa ou trabalho; vida ou morte; mérito ou sorte; belo ou feio. “Entendem a experiência de existir como um princípio único, que pode ser movido pela completude do ser. Quando pode se lançar na vida sem medo, sem competição, sem ser menosprezado pelas outras pessoas. Quando não precisa ter vergonha de dançar, cantar, pular, falar, pensar, refletir, sugerir, aprender. Isso tudo como um movimento de circularidades que os saberes não competem entre si, mais se complementam” (Munduruku, 2022, p.41).
Pensar em viver uma forma de tempo cíclico e não linear rumo ao futuro. Numa forma de vida onde tudo está interligado e que nada escapa da trama da vida. Enxergar que cada coisa criada está em sintonia com o criador e que cada ser, inclusive o homem, precisa compreender que seu lugar na natureza não é o senhor mais de um parceiro, alguém que tem a missão de manter o mundo equilibrado, em perfeita harmonia para que o mundo nunca despenque no seu lugar. Gosto de pensar na junção de trabalho e lazer. E, em que trabalho esporte. E, em trabalho e cultura; entre pão e poesia, a tudo isso chamamos de humanismo. Seguindo aqui as lições de Daniel Munduruku (2022).
Por fim, Qualquer estudo de História sobre a terra e o avanço expansionista capitalista do século XX, tem por obrigação antes moral, depois de ofício de não apagar os rastros, as pegadas e os vestígios dos povos indígenas, originalmente donos das terras. Tem por obrigação não dar continuidade à “narrativa da extinção” denunciada por John Monteiro.
Hägaté te tahfwa
No dia 08 de novembro do ano 524 da invasão colonialista e colonizadora pelos “pioneiros” contra as terras e corpos indígenas que viviam em solidariedade e harmonia nessas terras amazônidas. E 94 anos das invasões das terras do Vale do Ivinhema pelos mesmos “pioneiros”, e “colonizadores” contra o povo Ofaié.