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‘Guarânias dizem adeus’ de Jaminho: História de Mato Grosso Sul: fronteira, cultura e identidade na intersecção entre literatura e história

Eduardo Martins, docente adjunto 4, professor da disciplina História de Mato Grosso do Sul (UFMS-CPNA) –

Guarânia:

Guarânia é um estilo musical de origem paraguaia, em andamento lento, geralmente em tom menor. Foi criada em Assunção pelo músico José Asunción Flores, em 1925. Wikipédia.

“Guarânias dizem adeus”, 2020, do escritor-historiador e literato sul-mato-grossense nato, raiz como se diz, Jaminho.

Recomendo a todo/a sul-mato-grossense, ou amantes de boas tramas e narrativas, particularmente, por se tratar de uma espécie de escrita nativista, uma espécie de revelação do Eu interior de cada um/a daqueles/as que nascemos ou moramos aqui nessa região pantaneira do Brasil, sertão.  Simplesmente, porque nessa escrita estão muitas das vivências, histórias e memórias de lugares, coisas, objetos, bichos, frutos do mato, gastronomia, mas, sobretudo, esse livro ajuda a relembrar o que e porque existe o gentílico sul-mato-grossense e, colabora para a afirmação de uma identidade própria, que se forja na lida e nos (des)encontros das pessoas entre si e entre o lugar/ambiente geográfico. Jaiminho, simplesmente, revela uma identidade fronteiriça, conectada umbilicalmente às forças da natureza; rios, riachos, córregos, matas, bichos de grandes e pequenos portes – mas, singelamente, nas relações humanas.

“Guarânias dizem adeus”: É, sobretudo, e principalmente, um romance, novelas que são contadas separadas, por capítulos, mas que se interligam, interconectam e se amalgamam, quando as personagens são, no fundo perfis psicológicos e sociais de pessoas comuns do mato, do mato grosso, aqui podem ler as duas iniciais “m” e “g” em letras maiúsculas se preferirem e transformar o espaço da ambientação novelesca no Estado da federação brasiliense, brasílica. São arquétipos de um tipo de lugar que se convencional politicamente chamar de fronteira.

No Estado fronteiriço onde o lugar lusófono é também hispânico; onde as duas culturas ibéricas; medieval, latina, católica, europeia, branca, vieram se juntar às populações originárias: Guarani, Kaiowá, Terena, Kinikinaua, Guató, Guaicuru/Kadiwéu, Ofaié. Aqui onde se chama fronteira; que é muito mais um lugar imaginado do que um lugar geoespacial; dado que todo lugar é de “fronteira”, e às populações afrodescendentes, que por aqui chegavam arrancadas do seu continente africano.

Desta feita, Jaminho mostra essa especialidade nessa espacialidade, revelando que a fronteira é a relação que se faz e se dá, logo, relacionalmente; no íntimo contato humano entre as pessoas de diferentes matizes e matrizes culturais. Logo, fica bem visível no “Guarânias”, essa capacidade ímpar geo-histórica do Jaminho de captar e revelar o que só o véu da literatura é capaz de fazer, que é trazer à baila significados outros acerca de cultura, fronteira, mas, sobretudo, identidade; três elementos essenciais na formação de um povo. No caso do seu romance; o povo sul-mato-grossense.

E caros, muitos caros aos historiadores de carteirinha, aos doutos na ciência dos documentos; aqui revelo minha franqueza e fraqueza. Assim o literato sai na frente com sua liberdade e plasticidade de criar, inventar, de construir a história sendo, às vezes, o próprio escritor, um personagem do seu romance, fazendo uma escrita-de-si, uma autobiografia em que ele mesmo se camufla em pseudônimos, apelidos, com maiores liberdades de escrita, mas, sobretudo, com uma qualidade que lhes é superior com a pena em mãos, via de regra. Dado que tem liberdade poética, liberdades para seus personagens, licença poética para imaginar.

São histórias, sim, com “h” mesmo, (vista de baixo) das vidas miúdas, das gentes sem importância para os grandes manuais didáticos que falam nas Escolas. Balzac certa vez disse: “O acaso é o maior romancista do mundo: para ser-se fecundo basta estudá-lo. A sociedade francesa ia ser o historiador, eu nada mais seria do que seu secretário. Ao fazer o inventário dos vícios e das virtudes, ao reunir os principais fatos das paixões, ao pintar os caracteres, ao escolher os acontecimentos mais relevantes da sociedade, ao compor os tipos pela reunião dos traços de múltiplos caracteres homogêneos, poderia, talvez, alcançar escrever a história esquecida por tantos historiadores, a dos costumes”. Honoré de Balzac (1799-1850), no prefácio à monumental “Comédia Humana”. Tal constatação balzaquiana vale pari passu para Jaminho e sua “Guarânias”, Comédia humana do sertão!? Engels disse a Marx certa vez que, aprendeu muito mais sobre a sociedade francesa do século XIX com Balzac do que em todos os livros dos historiadores e economistas. É que, os romancistas, possuem essa rara capacidade e sensibilidade de captar e trazer, para nós leitores, o íntimo da vida miúda, das relações entre as pessoas, que só eles e alguns bons antropólogos possuem.

A principal diferença entre a literatura e a História é que a História, enquanto ciência, só está autorizada a afirmar ou negar aquilo que as fontes históricas (documentos e vestígios do passado) permitem, sendo a História não apenas uma forma apenas artística de representar o passado. E quem há de negar que esta lhe é superior? Como diz Veloso, em sua magistral canção “Língua” (1984) ao relacionar a poesia com a prosa; o amor com a amizade. Em que nosso poeta-mor faz uma ode à língua de Camões. Sem, contudo, deixar de apimentar que fomos forjados a ferro português; que a pátria é uma fabricação à língua, é a pátria. Mas que ele próprio, Caetano, então, não tem pátria, mas mátria e quer frátria. Numa clara manifestação tropicalista de matiz antropofágica; onde negros e “tupis” dão a nossa matrilinearidade ou fratrilinearidade. “Tupi, or not tupi that is the question”, vai bradar o anarquista Oswald de Andrade em 22, na “Semana de Arte Baderna”, depois achincalhada pelos burgueses paulistas.

Tal qual, no livro “Guarânias”, sul-mato-grossenses, em que a pátria que nos antecede não é a brasiliense, mas outra coisa, onde o Brasil é Paraguai e vice-versa, dado que a própria língua portuguesa é, por aqui, subvertida em dialetos, idiomas, palavrórios, algo como um portunhol, enquanto, metáfora, ou ironia do discurso oficial e nacionalista de pátria (amada?). Neste sentido, “Guarânias dizem adeus”, é um livro subversivo, que revela o protagonismo das personagens, resistindo a algum tipo de tentativa de imposição do discurso homogeneizador do povo brasiliense (trago aqui uma pitada de provocação em relação ao termo “brasileiro”– que não é gentílico, mas adjetivo que qualifica a profissão: extrator de pau-brasil). O sul-mato-grossense não foi o traficante de pau-brasil, como os paulistas bandeirantes, por exemplo, logo, não seria “brasileiro”!? Brasiguaios? A literatura especializada assim o denomina. A questão é a de saber onde começa e onde termina o lugar e as pessoas, a “fronteira”. Deixo isso para os doutos no assunto.

“Guarânias”: na sua sociedade de vaqueiros, comerciantes, gringos, negros, mulheres e homens indígenas, paraguaios e paraguaias emigrados para depois da “fronteira”, putas, e gays que se revelam, a despeito da sua pretensa macheza de peão. Enfim, homens e mulheres que têm em comum o ambiente; e tudo o que nele vem de arrabalde, periférico e marginal. Dão de graça a história, que Jaminho tem a enorme capasensibilidade de ajuntar tudo e fabricar uma narrativa coesa que redunda na identidade do sul-mato-grossense, do brasílico, em alguns lugares brasiguaios.

Onde o Brasil tem outras cores; mestiças, outras línguas/dialeto (portunhol?!), ou brasílico? Jaminho revela para nós um país que, muitas vezes, desconhecemos em meio ao caos urbano da “modernidade”.

É um livro humano, agridoce no seu tempero; tem muito amor, mas inerente a ele as dores de quando termina. É um livro vivo, que fala e, às vezes, geme… outras sussurra… Chora e ri quase simultaneamente. Se Marx mandou ler o Balzac para conhecer a história da França, eu recomendo a leitura do Jaminho para se conhecer a história do Mato Grosso do Sul.

Leiam.

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