O papo começou com um alerta sincero: “Vamos conversar, mas a internet aqui é horrível”, disse Ayeda Shadab. Realmente, durante a entrevista, a afegã demorou mais do que o normal para responder algumas perguntas. Ela não estava ganhando tempo para dar uma resposta mais elaborada, o problema era mesmo a conexão. A jovem de 26 anos é rápida, direta e articulada, em um país, como a internet, que vai se arrastando ao futuro depois de décadas de guerras, instabilidade e falta de investimentos. A renovação no Afeganistão pós-Talibã passa por pessoas como Ayeda, uma influencer com mais de 235 mil seguidores — número superior ao do presidente Ashraf Ghani (153 mil) — que não combina nada com a imagem da mulher afegã que o lugar-comum teima em traçar.
Enquanto muitas mulheres ainda dão os primeiros passos por mais liberdade no Afeganistão, Ayeda está alguns quilômetros à frente. Influencer e empreendedora, ela abriu uma butique em Sharenaw, bairro de classe média em Cabul, onde também mora, depois de fazer sucesso na rede social se apresentando como modelo das suas próprias criações. Na loja que ela define como “fofa”, Ayeda vende peças de roupa e joias, todas com a sua assinatura, para afegãs com origem nas classes trabalhadoras, mas que melhoraram o padrão de vida. Mulheres que, como ela, vão adicionando elementos ocidentais ao seu estilo de vida cotidiano sem a culpa com que os extremistas as aterrorizavam. Nem por isso Ayeda abre mão da sua própria cultura. Retrato de uma nação em transformação, a influencer, que é solteira e mora com as irmãs em um condomínio de prédios, navega entre um jeans justo e um véu islâmico e se mostra destemida com as escolhas que faz. “Não tenho medo do Talibã”, diz ela, com a coragem que caracteriza o seu sofrido povo.
Qual é a principal inspiração para a criação das peças vendidas na sua loja?
Ela vem de onde o Ocidente se encontra com o Oriente. Amo tudo que seja esteticamente agradável. Cabul não é. A cultura da indústria da moda foi perdida. Então comecei um negócio on-line criando as minhas próprias roupas. Eu virei modelo das peças, e as clientes pediram que eu abrisse uma butique.
E como você define o seu estilo?
Eu modernizo as roupas afegãs e as simplifico como a indústria ocidental faz.
‘Modernizar’ não é uma palavra que os afegãos costumam usar muito, não é mesmo? Ainda mais depois do terror do regime do Talibã.
O Talibã é afegão. Eu não tenho medo do meu próprio povo. Não tenho medo do Talibã. A situação política não me preocupa. Eu me preocupo com a segurança, os crimes e insurgência estrangeira.
Mas você acredita que a mulher moderna é o tipo que o Talibã deseja para as afegãs?
Eu sou uma afegã que serve outras afegãs, mães e filhas. Não lido com homens na boutique. Os meus trajes são respeitosos. Eu não promovo nada que possa ofender alguém.
No seu Instagram você escreveu: ‘Com relação às restrições, eu sorrio e gosto do que temos hoje’. Quais restrições às mulheres você respeita?
Restrições culturais e de segurança. Por exemplo, não podemos andar livremente, fazer piqueniques.
Por que não piqueniques?
Não podemos fazer piquenique por causa do assédio e dos olhares. Tem que ser em uma residência particular. Isso é um problema. Muitas vezes temos que ficar trancados em casa. Respeitosamente sorrio e aceito as circunstâncias.
O Afeganistão é um país muito ligado às tradições. Quais delas você segue?
A tradição que personifico é a de nossos ancestrais. Falo com a gentileza que nosso profeta praticou. Espero até que os outros terminem de falar antes de fazer os meus comentários. Como minha avó. Observo as energias ao meu redor, para saber se devo ou não ser tolerante. Eu pratico o respeito pela minha religião e pela minha cultura.
Você nunca usou uma burca, um traje que ficou marcado para as afegãs aos olhos ocidentais?
Não, não uso. Só tenho uma burca vermelha, mas por causa da cor. Ela não sai do meu armário.
Em algumas regiões o uso da burca é obrigatório para as afegãs. O que você acha disso?
As burcas surgiram muito antes do Talibã. As burcas existiam durante a monarquia. Homens e mulheres do Afeganistão são tradicionalmente conservadores. Eles preferem não ser notados ou vistos tanto em público. Eles não tiveram a exposição do mundo que nós temos, o acesso ao mundo na ponta dos dedos.Se uma mulher quiser usar uma burca, que seja. Se um homem a força, questiono se a força é necessária.Podemos nos vestir de maneira conservadora e apropriada sem nos sentir enjaulados. A maioria das mulheres nas cidades usa burca azul, as provincianas usam grandes véus pretos. Então, mesmo durante o tempo do Talibã no poder, as províncias mantiveram essa tradição.
Esse acesso ao mundo define o seu estilo? Como ele é?
Sim. Eu uso vestidos chiques afegãos. Eu também visto jeans com blusas longas por cima. Eu uso botas e sapatos de salto alto. Uso marcas de grife também.
Que grifes?
Manolo Blahnik, Gucci, Zarfa, Mango…
Você usa véu também?
Sim, uso. No Afeganistão, estou com o meu véu todo o tempo. Só o tiro quando estou com pessoas que conheço bem e com as quais me sinto confortável.
No seu Instagram, porém, há muitas fotos em que você aparece sem véu.
São fotos, na maioria, tiradas no Uzbequistão (ex-república soviética vizinha ao Afeganistão). Lá não uso.
Por falar em Instagram, você usa a rede social com objetivo meramente comercial?
Uso também para construir uma nova narrativa sobre o Afeganistão. Para mim é uma forma de reviver a velha cultura e a História do Afeganistão com uma visão moderna, conectando o velho e o novo.
O que você acha do feminismo?
Depende do que as pessoas pensam que seja o feminismo. A igualdade é difícil de se justificar no Afeganistão. Mas eu acho que defendo as mulheres e abro um caminho para elas.
Este é o seu tipo de feminismo?
É a defesa dos direitos humanos. Não pedindo que seja tudo igual para homens e mulheres.
Que direitos as afegãs conquistaram na última década?
Muitas de nós não temos plena consciência dos direitos aos quais temos pleno acesso. Nós apenas utilizamos os direitos que são personalizados para nós. O direito de possuir um negócio, trabalhar, dirigir, tudo isso que se enquadra na Constituição, mas nem todas sabem.
Jornalistas, defensores dos direitos humanos, políticos e outras figuras influentes costumam ser alvos de assassinatos em Cabul e em outras parte do Afeganistão. Você tem mais de 235.000 seguidores, é uma influenciadora. Você não tem medo?
Eu só temo a Deus.
Mas em uma entrevista (à “Insider”) você disse: ‘Sempre há medo em seu coração, isso faz parte da vida no Afeganistão. Mas temos que nos levantar e viver nossas vidas’…
Medo de alguém que amamos ser ferido, sequestrado ou morto. Tememos por aqueles que amamos mais do que por nós mesmos.
Você já perdeu algum parente para a guerra?
Todos aqui já perderam.
Quem você perdeu?
Prefiro não revelar, é algo muito delicado.
O Afeganistão ainda vive um choque de etnias. Incomoda ter que dizer a sua etnia, algo que ganhou uma importância no país em meio aos conflitos armados?
Eu sou afegã, é assim que sempre me apresento. Nunca tive necessidade de explicar minha origem porque falo a maioria das línguas do país: uzbeque, a minha primeira língua, dari, pashto, hindi, um pouco de mandarim e inglês.
Você se sente como um símbolo feminino, uma voz para outras mulheres no Afeganistão?
Eu falo só por mim mesma. Mas também crio tendências. Talvez o que eu falo combine com o que está no coração das pessoas.
Você tem planos políticos?
Não que eu saiba. Só tenho planos para negócios.
Você prefere ser estilista ou modelo?
Designer. Só modelei porque não tinha dinheiro para pagar um modelo. Tive que exibir as minhas roupas.
Você tem um namorado?
Esta é uma questão que não vou responder publicamente. Não é apropriada.
Você já viajou a alguns países. O que viu neles que gostaria de ver como realidade para as mulheres no Afeganistão?
Eu encontrei paz, segurança e prazer que não temos no Afeganistão. Mulheres andam sem ser constantemente molestadas. As mulheres podem sair até as 22h em um restaurante ou loja sem se preocupar com o que as pessoas vão pensar. Eu gostaria que isso existisse no Afeganistão. Eu encontrei ambientes limpos e sistemas adequados que não existem no Afeganistão.O Afeganistão está sujo e poluído, vivemos acima da capacidade. Não é esteticamente agradável o Afeganistão. Altos muros de concreto, homens com AK-47, carros velhos e lixo por toda parte. Mas quando você visita outros países o ambiente é verde, claro e calmo. (Extra)