Julio Pompeu (*) –
A enorme mão de Perpétuo envolvia completamente o pequeno copo de cerveja, que vez ou outra levava à boca em pequenos goles, como se quisesse que aquela garrafa durasse uma semana. Desde a morte de seu amigo Milton Le Cocq, Perpétuo iniciou uma campana na favela do Esqueleto. Em algum momento, Cara de Cavalo teria que aparecer por lá.
Gilmar achava engraçado aquele homenzarrão aboletado na pequena cadeira da sua birosca. Gostava dele. Sempre lhe foi gentil. Sabia que ele podia ser violento como os outros mas, diferente dos outros, Perpétuo era, acima de tudo, um policial justo. Por isso, Gilmar topou ajudá-lo.
Na falta de igreja na favela, a birosca do Gilmar tornou-se solo sagrado. Era lá que bêbados se confessavam, casais celebravam e até velórios eram realizados. Seria o lugar perfeito para Cara de Cavalo se entregar para Perpétuo que, apesar de compactuar com a ideia de que assassino de policial deveria ser morto, deu-lhe sua palavra de que o levaria vivo para o Distrito Policial, caso se entregasse. E a palavra de Perpétuo era uma só. Agora, era só esperar.
A paz santa e tediosa da birosca foi-se embora quando outros três policiais, bem mais jovens que Perpétuo, entraram. Gilmar não os conhecia, mas conhecia o tipo. Vira muitas vezes aquele olhar arrogante de quem ganhou uma arma e uma autorização para matar. Também conhecia aquela fúria.
Foram diretos com Perpétuo. Souberam do combinado. Queriam matar Cara de Cavalo. Perpétuo não podia permitir. Dera sua palavra irretratável de que ninguém o mataria. Insistiram. Gilmar sentiu que aquilo não acabaria bem. Pensou em intervir, talvez oferecer um conhaque para acalmar as coisas. Desistiu quando lembrou que gente armada não costuma dar ouvidos a gente desarmada.
Perpétuo não queria muita conversa com aqueles novatos. Meteu a mão no peito de um deles, o mais nervoso. “Galinho, isso é trabalho pra profissional, sai daqui. Eu dei a palavra que vou prender ele e ele vai sair daqui vivo”. “Não se esqueça de que o vento que venta lá, venta cá também”, disse o novato já sacando a 45. Foi um único tiro. Certeiro no peito. Perpétuo tombou morto.
Gilmar assistiu a tudo inerte. Mais de espanto do que de medo. Perpétuo, o policial herói, assassinado por outro policial. Os três agiram como se nada de extraordinário tivesse acontecido. Gilmar lembrou de sentir medo quando o galinho que matou Perpétuo o encarou. “Tá olhando o quê? É isso que acontece com quem mexe comigo, entendeu? Pode espalhar por aí. Meu nome é Jorge. Jorge Galante e eu vou matar o Cara de Cavalo também!. Pode dizer pra ele que vai virar presunto”. Cara de Cavalo foi morto poucos dias depois, com mais de 50 tiros.
Uma única bala matou Perpétuo e a polícia do passado. A ditadura que começara meses antes tratou dos rescaldos. Daqui pra frente, heróis seriam mais como Jorge Galante.
Em cada policial que mata preto pobre rendido, em cada secretário de segurança que incentiva uma polícia matadora, em cada miliciano, em cada aplauso de chacina de favelado, em cada policial que sai de casa com ódio de nem sabe o quê, há um pouco de Jorge Galante. Seu tiro matador de polícia ainda sai dos canos de hoje, num tiroteio sem vergonha, sem honra, sem fim.
(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.
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