Julio Pompeu (*) –
O domingo começou convidativo. Sol de verão no céu de um azul infinito e ventos frescos. O clima era tão bonito, agradável e festivo que as pessoas ganharam as ruas e praças de Samambaiaçu e lá ficaram.
Era dia de votar na eleição de mentira, da qual as pessoas foram avisadas somente na noite anterior. Não fosse pelo tamanho da população e da cidade, a comunicação não teria dado tão certo. Era preciso reconhecer também os méritos de Sargento Braga na organização.
Não demorou muito para que a eleição de mentira ficasse muito parecida com a eleição de verdade. Não só pelas urnas e todo ritual de votação, mas pela rápida aparição de candidatos, santinhos impressos, cabos eleitorais e carros de som com musiquinhas repetitivas e irritantes.
Padre Ambrósio perambulou pela cidade com seu candidato, João, à tiracolo. Doutor Ruy apropriou-se do coreto da praça e pôs-se a discursar, fazendo cada minuto de palavrório parecer horas para os de pouco estudo e para os de muito estudo também.
O Samambaiaçuano publicou uma foto enorme de Seu Zenóbio abraçado com seu sobrinho, Gilberto do Açougue. No miolo, uma longa entrevista do sobrinho, com perguntas e respostas escritas pelo próprio Zenóbio, destacando porque Gilberto do Açougue seria o maior prefeito da história de Samambaiaçu.
Vereador Tião passou o dia a cumprimentar eleitores, beijar crianças e puxar conversas de fingida intimidade com quem passasse pela sua frente. Tudo sob os olhares atentos de Coronel Pitanga e Comendador Pedreira.
A população votou em peso. Até o pessoal das roças mais distantes compareceu, devidamente escoltado e orientado pelos capangas do Coronel Pitanga.
Ao início da apuração, cada um dava sua vitória como certa. Seu Zenóbio, pela força da imprensa; Padre Ambrósio, pela força da fé; Doutor Ruy, pela força das palavras; Comendador Pedreira, pela força da grana e Coronel Pitanga pela força. Nenhum deles disfarçou o espanto quando Sargento Braga, do centro da praça, anunciou com alto falante o resultado: Dona Maria das Dores!
Com o anúncio, a população explodiu em festa, iniciando uma comemoração que se estendeu noite a dentro.
As lideranças estavam perdidas. Perguntavam-se quem era, afinal, essa tal de Dona Maria das Dores. E suas caras pálidas ficaram brancas quando descobriram que era idosa, preta, pobre, rezadeira e benzedeira.
Instalou-se um amargor entre eles. Seu Zenóbio viu seu jornal desmoralizado; Doutor Ruy, humilhado em sua erudição; Padre Ambrósio deu adeus à reforma do telhado; Comendador Pedreira viu ameaçados seus contratos com a prefeitura; Coronel Pitanga, seu poder sobre os roceiros.
Sargento Braga passou a noite em claro, preocupado que estava em manter a ordem nas ruas, que imaginava que jamais seria a mesma depois daquela eleição. Com o raiar do dia, finalmente deitou-se para um descanso interrompido poucos minutos depois. “Uma tragédia!”, anunciou o soldado Simão ao acordar o sargento.
Ao chegar à casa de Dona Maria das Dores, o sargento se surpreendeu ao encontrar Seu Zenóbio, o Coronel, Doutor Ruy, o Comendador e Padre Ambrósio. Todos em volta do corpo ensanguentado de Dona Maria, que ainda guardava um punhal cravado nas costas.
O sargento examinou a cena com cuidado. Contou cinco punhaladas. Policial com mais de 20 anos de experiência, foi categórico: suicídio. Os demais se entreolharam e assentiram com a cabeça.
No dia seguinte, O Samambaiaçuano noticiou sem detalhes o fim de Dona Maria das Dores. Padre Ambrósio rezou-lhe uma missa, falando da importância de ser católico em seu sermão. E nunca mais se falou em público de Maria das Dores.
Dias depois, Doutor Jairinho foi eleito na eleição de verdade. Uma eleição triste, na qual em cada urna da cidade havia um jagunço de Coronel Pitanga lembrando a cada pobre eleitor o fim trágico de Dona Maria das Dores.
(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.
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