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Julio Pompeu: ‘Atletas’

Julio Pompeu (*) –

Do avô Orlando herdou só o nome. A roça foi tomada por gente armada antes dele morrer. O pai reclamou. Acabou morto também. Sem terra no interior, Orlando foi parar na capital. Cresceu se virando como pôde. No céu da favela em que dorme, urubus voam em círculos em busca de restos. “São como eu”, pensa Orlando. A favela é separada da movimentada rodovia por um muro e, ao lado da rodovia, o mar. Sobre a rodovia apinhada de carros bacanas, gaivotas sobrevoam também em círculos. “São como eles, comem peixe fresco…”.

Por um buraco no muro da favela, Pablo alcança a estrada. Quando o trânsito para de transitar, tenta vender amendoins e biscoitos para motoristas chateados por estarem ali. Consegue algum dinheiro. O suficiente para não passar fome no dia. Um atleta famoso disse na internet que a jogada mais espetacular é apenas um ponto. Logo depois, precisa ganhar outro. Bonita ou feia, a jogada é sempre um ponto e logo depois tem que ganhar outro, e outro… Os dias de Pablo são assim. Corre entre carros e desvia de motocicletas com agilidade para ganhar o do dia, que é só o do dia.

Bem ao lado do barraco onde Orlando e Pablo dormem, mora Pedro. É visto como um sujeito bem de vida na favela porque tem emprego com carteira assinada. É lixeiro. Passa as noites correndo, saltando, levantando e arremessando sacos malcheirosos para dentro da caçamba do caminhão que engole tudo. Às vezes, ele também se sente engolido pela boca do caminhão, pelo cheiro do caminhão, pelo lixo que agarra e arremessa. Percebe que na rua olham para ele como olham para o lixo. Exceto as crianças, que admiram alguém andar dependurado do lado de fora de um caminhão barulhento e com uma boca enorme. As crianças não o fazem sentir-se engolido. Pensa que se o mundo fosse governado por crianças, ninguém seria engolido nesta vida.

Pablo quase foi atropelado pela moto do Tunico, outro que dorme perto dele na favela. Tunico sempre tem pressa. Ganha por entrega. Entrega muito para ganhar pouco. Corre, desvia, corta, entra na contramão, arrisca-se e põe os outros em risco para sobreviver. Quando cai, atropela ou a moto quebra, o problema é dele e não de quem paga pouco para ele entregar. É um empreendedor. Teria liberdade de trabalhar quando quiser se a necessidade de sobreviver não lhe roubasse a liberdade. Tunico vive entre a favela murada rodeada por urubus e a sensação de liberdade do voar na sua moto por entre carros caros e vidas baratas.

O buraco no muro da favela foi feito por Seu Afonso. Chamam de “Seu” desde que ele não tinha idade para ser chamado de “Seu”. A cara ranzinza e seu senso prático lhe deram um ar mais respeitoso, de ser pessoa de menos intimidades. Foi por este senso prático e raiva do Estado, que abriu o buraco no muro. “Querem nos prender? Esconder? Era só o que faltava!”. Catou marreta, talhadeira e pôs-se a espancar o fino concreto sob os aplausos da garotada que jogava futebol no terreno baldio. Trabalha longe dali. É camelô no centro. Vez ou outra, perde tudo para a guarda da prefeitura, que lhe toma o sustento pela falta de um papel.

Seu Afonso não gosta de papel, nem de guarda, nem de político e nem de muro. Seu Afonso gosta só de sonhar com uma vida em que se lute por medalhas e glórias e não apenas pela sobrevivência. Sonha com a deliciosa liberdade de se viver uma vida sem muros.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

Leia também “As redes de apoio“, de Abrao Slavutzky.

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