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Desde 1968 - Ano 56

InícioColunistaJulio Pompeu: 'O surto'

Julio Pompeu: ‘O surto’

Julio Pompeu (*) –

Ele não aguentava mais. Não aguentava mais nada. Não aguentava mais tudo isso. Sua vida não casava com seus sonhos e seus sonhos já haviam se transformado em ilusões há muito tempo. Sentia falta de vida, sonhos, esperanças. Sentia falta de sentir alguma coisa que não fossem sentimentos tristes e raivosos. Que não fossem a mesma tristeza e a mesma raiva sentida ontem, e anteontem, e antes disso. Numa vida vivida em que se vive sem enxergar o futuro, em que não se sente, só ressente.

Fechou-se no carro e gritou como se quisesse arrancar as cordas de dentro da garganta. Espancou o volante como se batesse em si mesmo. Ainda era pouco. Precisava de mais dor, como que para sentir algo que parecesse mais verdadeiro que seus ressentimentos. Saiu do carro e pôs-se a socar o muro chapiscado de concreto.

A dor da mão ensanguentada e quebrada lhe trouxe alívio. O suficiente para respirar, gemer e pensar de outro jeito. Num surto de lucidez, indagou-se sobre a própria vida. O fez perdido em respostas desconexas para perguntas desconhecidas.

Resolveu procurar no celular as perguntas e respostas que lhe faltavam. Parecia o óbvio a se fazer neste mundo em que só se olha nos olhos de alguém se houver uma tela entre ambos. Para todas as perguntas, a resposta era dinheiro. Era isso! Grana resolveria tudo. Mudar o mindset traria grana, mudar os hábitos traria grana, acreditar em Jesus traria grana.

Mas o que mais tocou o que sobrou de seu coração retorcido foram as respostas políticas para a pergunta do porquê, sendo tão fácil, não conseguia a grana que resolveria sua vida. Comprou os segredos do coach, mudou o mindset, teve fé no investimento divino. Se nada disso deu retorno, só poderia ser por causa de alguém que não queria que sua vida mudasse. Alguém que queria muito sua vida assim, daquele jeito meia-vida. Gente corrupta que lhe roubava a vida.

“Malditos comunistas de merda!”. Eles queriam a ditadura. Queriam fazer dele gay. Queriam o roubar com o governo. Queriam o enganar com a televisão. Queriam o doutrinar com as universidades. Era uma grande conspiração. Agora ele enxergava muito bem. Sua mente iluminou-se de certezas. Sua raiva e tristeza ganharam imagens para ressentir com propósito, para ressentir com consciência.

Descobriu que não estava sozinho em sua descoberta, nem em seus ressentimentos. Agrupou-se em WhatsApp de ressentidos esclarecidos. Idolatrou líderes que lhe falavam de esperança, dinheiro, Jesus e ódio. Amava os corajosos que mitavam transgredindo.

Viajou a Brasília querendo mudar tudo. Não queria mais gritar no carro e socar muro. Agora, queria gritar bem alto seu ódio na praça e quebrar a mão quebrando a cara de ministros, presidente e palácios. Estava seguro, confiante por não estar mais sozinho. Na multidão, os ressentimentos empolgam-se.

Pensou no seu jeito de quebrar tudo. Seu espírito empreendedor – que descobriu que era o espírito certo para se ganhar dinheiro – o inspirava na inspiração da massa, mas dificultava agir com a massa porque empreendedor é indivíduo e massa é classe. E classe era coisa de comunista, coisa de vagabundo preguiçoso.

Quando explodiu a si mesmo sem explodir os prédios e pessoas que pretendia explodir, foi chamado de maluco por todos os que comungaram ressentimentos com ele. E de idiota por todos aqueles que comungavam ressentimentos e espantos diferentes do dele.

Enquanto seu corpo fantasiado apodrecia no chão da praça, entre piadas, discursos e indignações, só uns poucos que o amavam se perguntavam como foi possível que quem um dia sorriu, amou, viveu, pudesse acabar daquele jeito.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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