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Julio Pompeu: ‘O tempo de Euclides’

Julio Pompeu (*) –

Euclides não tira o relógio do pulso para nada. Confere a hora a toda hora, mas seu relógio marca sempre a mesma hora: 10:17. Ele não anda. Também não está quebrado. Está sempre pontual, no tempo de Euclides. Seu tempo é só seu. Único. Confuso para os outros. O tempo de Euclides é um agora que não passa.

Euclides sabe que o sol nasce às 6:15, o almoço com os amigos é às 13 horas, que tem que voltar para o trabalho às 14 horas, que o sol se põe às 17:37 e que o fisioterapeuta está marcado para às 19 horas. Mas estes tempos não são o tempo de Euclides. São apenas tempos de encontro. Sincronia do estar no espaço e lá encontrar quem ou o que se espera encontrar. E Euclides é sempre pontual no tempo dos encontros, ainda que não use relógio para isso.

O tempo de Euclides é um tempo de desencontros e nos desencontros da vida, para Euclides, são sempre 10:17. Um tempo único, que não muda, porque Euclides vê que nada muda nesta vida com a mesma clareza que vê 10:17 em seu relógio de pulso.

Há tempos, ele via na televisão um ministro dizendo que era preciso primeiro fazer o bolo crescer para depois dividir. Metáfora de economia, que, apesar de ser coisa de dinheiro, sempre usa metáforas para parecer que não fala de dinheiro. As metáforas de hoje são outras, arcabouço, superávit fiscal, incentivos. Mas é só metáfora. Ainda é o bolo que tem que crescer eternamente. Euclides gosta de comer bolo, não de vê-lo crescer. Mas ele sabe que o tempo não passa e que o tempo parou no tempo que o bolo leva para crescer.

“A violência passou dos limites”, ouve Euclides todo dia na televisão. Ela está sempre passando dos limites. Dia após dia. Porque o limite de hoje é o mesmo de ontem. É o limite do tempo de Euclides. O limite eterno das 10:17. Todos os dias ele lê jornais e assiste às mesmas coisas do tempo que não muda.

Estudou história. Aprendeu sobre massacres, covardias e genocídios do passado. Os livros davam a entender que eram coisa de gente de outro tempo. E Euclides entendia desse jeito. Achava que eram coisas que, aos poucos, ficariam para trás. Euclides ainda não conhecia o seu tempo. Hoje, assiste a massacres, covardias e genocídios, que têm outros nomes, mas que não deixam, por isso, de serem os mesmos massacres, covardias e genocídios do tempo que não muda.

Euclides não aprendeu sobre o seu tempo nos estudos. Ou com algum sábio de barbas grisalhas. Ele aprendeu às 10:17 de um dia que não acabou e que não acaba nunca para Euclides.

Às 10:17 o carro de rico bêbado atravessou o sinal vermelho e acertou em cheio o carro de Euclides. Matou na hora sua esposa e seu filho. Sobrou só Euclides, de corpo, coração e relógio quebrados.

O motorista rico teve a foto mostrada nos jornais. Não era a primeira vez que o rico corria bêbado de carrão. Nem foi a última. Virou coisa de justiça e de seu tempo que demora para que todos se esqueçam de fazer justiça. E com o tempo, todo mundo se esqueceu daquelas 10:17, menos Euclides.

Ele ficou preso no seu tempo por não conseguir esquecer. Já os outros, vivem presos no mesmo tempo porque se esquecem. Porque nunca aprendem com o tempo. Porque não querem que o tempo mude. Porque nunca consertam seu relógio.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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