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‘Juventude perdida’, por Julio Pompeu

Julio Pompeu –

A chuva do fim daquele dia de agosto antecipava a escuridão da noite. Seu Boaventura ligou o rádio apressadamente, achando que havia perdido o começo de Conversa em Família, seu programa favorito. Mal sintonizou na Rádio Globo e ouviu a inconfundível voz de Carlos Lacerda: “Aqui, em mais um lar brasileiro…”.

Martha entrou na sala apressadamente. “Ah, pai! Esse programa careta novamente?”. Seu Boaventura franziu a testa e lançou um olhar de decepção para sua filha. “Quer ouvir aquelas músicas novamente, não é?”. “Vai começar daqui a pouco, pai, o programa do César Alencar na Rádio Nacional, já está começando!”.

De espírito conciliador, Dona Teresa interveio. “Deixa a menina, amor! Deixa ela ouvir as músicas”. “Ah, essas músicas! Esses sambas! Esses batuques! E essas letras? Uma desavergonhice! Tudo culpa desses programas da Rádio Nacional que espalham essas coisas. Escute o que eu lhe digo, mulher, estão acabando com a nossa juventude. Veja como este ano de 1958 está uma bagunça! Essa é uma geração perdida!”.

Martha não perdia um capítulo sequer de Selva de Pedra. Não saberia dizer se assistia mais pela trama ou pelo galã Francisco Cuoco. Desde seu casamento, em 1969, tornou-se grande noveleira. Não tinha filhos, mas abrigou em sua casa a Maria, sua prima adolescente vinda do interior para estudar na capital. Menina agitada, como toda adolescente.

Martha se preocupava com as amizades da menina. Principalmente depois que começou a andar com aqueles jovens cabeludos que falavam de liberdade, justiça e outras coisas perigosas de se falar naqueles tempos. Responsável sem ser mãe, tentava sem muito sucesso, alertar a menina dos perigos daquelas ideias. “Esta juventude inconsequente está perdida…”, pensava, enquanto invejava Regina Duarte aos beijos com Francisco Cuoco na tela de sua televisão Telefunken.

O verão de 1985 estava inclemente. Maria suava por todas as dobras de seu corpo. O inheco-inheco dos grandes ventiladores de teto mais atrapalhavam sua aula do que dissipavam calor. Aprendeu com outros professores a lançar perguntas para a turma. Forma de engajar alunos entediados. Ninguém respondia, deixando um instante de silêncio dominado pelo barulho irritante do ventilador.

Tentou provocá-los. Falar da vida, da política. Passivos estavam, passivos ficaram. Foi mais direta: “gente! Vocês não têm opinião? Não pensam sobre nada disso?”.

Luísa carregava constrangimento com a situação há algum tempo. Gostava da professora. Reconhecia seu esforço. Arriscou franqueza: “sabe o que é, professora, é que a gente acha isso tudo muito chato. A gente não gosta de política”.

Maria teria preferido o silêncio da turma a ter ouvido aquilo. Não entendia. Não se conformava, como, de resto, inconformidade era característica de seu espírito militante. Lamentou profundamente a alienação daquela juventude, perdida nos efeitos da nefasta ditadura.

Luísa respirou fundo. Não gostava de falar em público. Estava mais acostumada a resolver as coisas em pequenas reuniões, com muita objetividade. Ouviu, um dia, que executivo eficiente era assim e passou a ser assim. Os 15 minutos para apresentar para todos da empresa as metas para 2011 pareciam uma eternidade.

“Bom dia, chefa!”, disse Amanda, a nova psicóloga do RH. A descontração daquela menina incomodava Luísa, parecia exagerada, mas ela colocava esses incômodos na diferença de idade entre elas.

“Chefa, preciso te dar um toque. Esse casaquinho não é muito instagramável. Sem ele você vai ficar melhor nas postagens. E cuidado para não chamar a nova Presidenta de Presidente. Agora o correto é com A no final. E se puder cumprimentar falando todEs, vai arrasar!”.

Na sua objetividade, Luísa não ligava para nada disso. Não tinha Instagram. Achava uma perda de tempo. Perda de dinheiro. Não dava a mínima para linguagem neutra. Achava uma bobagem. Respirou fundo novamente, desta vez para lamentar no seu íntimo ter que trabalhar com aquela juventude perdida…

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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