Wilson Matos da Silva (*) –
A recente derrubada do veto presidencial ao Projeto de Lei n. 490/2007, transformado na Lei n. 14.701/2023, reacendeu um intenso debate jurídico sobre os efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) no controle de constitucionalidade. Para compreender a situação, é essencial diferenciar os efeitos das decisões proferidas no controle difuso e no controle concentrado de constitucionalidade e situar a posição da decisão que declarou a tese do Marco Temporal inconstitucional.
Há uma Diferença entre Controle Difuso e Controle Concentrado de Constitucionalidade. O controle de constitucionalidade pode se dar por duas vias principais: o controle difuso e o controle concentrado. No controle difuso, qualquer juiz ou tribunal pode afastar a aplicação de uma norma em um caso concreto, sem necessariamente retirar a norma do ordenamento jurídico.
Já no controle concentrado, realizado pelo STF em sede de ações como ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) e ADC (Ação Declaratória de Constitucionalidade), há a possibilidade de declaração de nulidade com efeitos erga omnes (para todos) e vinculantes para os demais órgãos do Estado. O Marco Temporal foi declara inconstitucional com efeito erga omenes repercussão geral reconhecida.
A ‘Inconstitucionalidade sem Pronúncia de Nulidade’ e a Ineficácia de Qualquer Tentativa de Restabelecimento por meio de lei a emenda a constituição é impossível. A “inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade” é aceita em nosso ordenamento jurídico, embora não seja expressamente prevista na Constituição Federal. O STF já aplicou esse instituto em alguns julgados, especialmente quando a declaração de nulidade imediata poderia gerar um vácuo normativo ou insegurança jurídica. Um exemplo foi o caso do Fundo de Participação dos Estados (FPE).
No caso do Marco Temporal, o STF não apenas reconheceu sua inconstitucionalidade, mas fixou parâmetros que tornam qualquer tentativa de restabelecê-lo uma afronta direta à ordem constitucional vigente. No julgamento do STF sobre o Marco Temporal, o tribunal reconheceu a inconstitucionalidade dessa tese, mas o Congresso, ao editar a Lei 14.701/2023, tentou restabelecê-la. Qualquer nova norma que reintroduza o Marco Temporal, inclusive por meio de emenda constitucional, seria ineficaz e inconstitucional.
O Mandamus Constitucional inserto no artigo 67, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), determina expressamente a obrigação do Estado de concluir a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição de 1988. A tentativa do Congresso Nacional de restabelecer o Marco Temporal por meio da Lei n. 14.701/2023 é inócua diante da decisão do STF e da natureza imutável do artigo 67 do ADCT. A inconstitucionalidade da tese já foi reconhecida, e qualquer norma que busque reintroduzi-la não possui validade no ordenamento jurídico.
Ao julgar a inconstitucionalidade do marco temporal, a Suprema Corte reafirmou que o direito dos povos indígenas sobre suas terras não decorre de uma aquisição estatal ou concessão, mas sim de um direito originário, anterior ao próprio Estado brasileiro. Essa compreensão está expressa no artigo 231 da Constituição Federal, que reconhece os direitos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas, independentemente de um marco temporal fixo.
Desta forma o STF seguiu a vontade do Constituinte Originário, que garantiu aos povos indígenas o direito às suas terras sem necessidade de comprovar posse em 1988. O julgamento consolidou o entendimento de que a demarcação não é um ato de concessão do Estado, mas um dever constitucional de reconhecimento das terras indígenas.
O artigo 231, § 4º, da Constituição Federal determina que são “nulos e extintos” os títulos de propriedade concedidos sobre terras indígenas, e que cabe apenas a indenização pelas benfeitorias de boa-fé. No entanto, a aplicação desse dispositivo ainda enfrenta desafios, especialmente em relação à sua eficácia prática e à resistência política.
A decisão do STF no julgamento do Marco Temporal reafirmou a força normativa do artigo 231 da CF, consolidando a nulidade dos títulos sobre terras indígenas independentemente de qualquer prazo prescricional. Agora, a Corte precisa garantir que essa norma seja aplicada de forma efetiva, impondo sua força vinculante sobre os entes administrativos responsáveis pela anulação desses títulos.
O artigo 54 da Lei 9.784/99, que prevê o prazo de 5 anos para a anulação de atos administrativos, não pode ser usado para restringir um comando constitucional de eficácia plena, como é o caso do artigo 231, § 4º. Afinal, esse dispositivo não trata de simples atos administrativos, mas sim de um imperativo constitucional que determina a nulidade de pleno direito dos títulos indevidamente concedidos sobre terras indígenas.
Portanto, o próximo passo é a efetivação dessa nulidade, com a administração pública federal e os governos estaduais cumprindo seu dever de: I – Anular títulos concedidos sobre terras indígenas, sem restrição de prazo. II – Indenizar apenas as benfeitorias de boa-fé, e não a terra em si. III – Resistir a manobras legislativas que tentem restaurar direitos sobre áreas que, constitucionalmente, pertencem aos povos indígenas.
(*) É Indígena, Advogado Criminalista OABMS 10.689, especialista em Direito Constitucional, é Jornalista DRT 773MS. residente na Aldeia Jaguapiru – Dourados MS. [email protected]