O CORPO QUE ABORTA É O MESMO QUE SE LANÇA, por Priscila Frehse (*)
Engordei o sol noturno, de Rebecca Loise, recém-publicado pela editora Urutau, é livro de lançar-se mulher. Psicanalista e artista, artista e psicanalista, psicanartista, nem uma nem outra, ou ambas, sua escrita é a de uma mulher que nasce, sem aviso prévio ou pé na porta, “uma escritora do século XXI”. Suas cenas, diário em prosa, nas páginas de abertura, conduzem a uma comunidade de destino: sou mulher, lembro-me, e os abismos que ela percorre são também os meus. A sensação é de que é um texto de verdade, com toda a estrutura de ficção de que são feitas as boas verdades. O livro vai crescendo em literatura, da prosa ao verso. Algo de Rupi Kaur caetaneada, linikerizada e psicanalisada com uma pitada de Hilda Hilst. Não sei fazer crítica literária, penso, e Rebecca nos desloca para um tempo da escrita em que é possível fazer algo do que não se sabe, do que se abortou em nós: escrita do abismo, da solidão, do não saber ou da perda. Escrita de quem tem um corpo que aborta, que sofre de amor e que percorre suas noites de perda em melancolia visceral, como costumam ser as melancolias das mulheres.
O ponto alto do livro, lido por uma psicanalista que sou, por ofício, é quando atinge o x da questão – mistério, mística, mulher – anunciando o que vem depois, uma escrita que se abre em poesias que parecem anunciar devires de Rebecca, além da psicanálise. Algo Mateus Aleluia – “eu que vinha de outras terras, tratando das minhas feridas, trazidas de uma vida aflita, meus traumas Freud não explica” –, que cito aqui em retribuição as todas as belas referências da música brasileira que a autora nos oferece ao longo de seu livro.
Escreva, Rebecca, escreva. O corpo que aborta é o mesmo que se lança. Suas performances criadoras que explodem em imagem nas redes sociais parecem escapar e pulsar do que se entrevê nas entrelinhas deste livro, em ensaio de riso-imagem, como no Manifesto de Hélène Cixous (2022), escrito em 1975, no linguajar e espírito do seu tempo, que agora já é outro:
Não aguentamos mais entrelaces, a fábrica de nós, sempre a excluir, a ladainha da castração que se transmite e que genealogisa. Nós não avançaremos mais a marcha ré; nós não iremos recalcar algo tão simples como a vontade de vida. Pulsão oral, pulsão anal, pulsão vocal, todas essas pulsões são a nossa força, e, entre elas, a pulsão de gestação – assim como a vontade de escrever: uma vontade de se viver por dentro, uma vontade do ventre, da língua, do sangue.
A imagem-capa e ponto de partida não poderia ser melhor: vejo pernas cruzadas num divã vermelho, alusão ao erotismo que perpassa o ritmo de uma máquina de escrever. Sua escrita nos leva a evocar a imagem semblante de uma mulher que se forma, depois sangra, depois escreve, depois vive. A escrita visceral se mescla com ensaios de poesia que falam do outono, do genocídio, da morte e deixam a pergunta sobre quais serão os caminhos literários de Rebecca. Publicar um livro é ensaiar a vida, fazer palavras da mulher que sangra por dentro e que engorda o sol noturno a ponto de correr o risco de cair tamanha a gravidade. Poderia resultar no fim de tudo, como no fim de mundo da toda melancolia que abre o filme de Lars von Trier (2011). Mas Rebecca não vai por aí, a escrita que ela ensaia em seu lançamento é outra:
A mulher tem o poder de suportar
a gravidade de sangrar
viver e permanecer viva
Porque há dores que só a escrita. Há vidas que só a dança. A poesia-performance hipnótica O que será que serei?, de Rebecca, junto deste livro, são um convite para dançar a vida.
REFERÊNCIAS:
ALELUIA, Mateus. Fogueira doce. In: Fogueira doce, 2017.
CIXOUS, Hélène. O riso da medusa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.
TRIER, Lars von. Melancholia. Califórnia Filmes, 2h 10min, 2011.
(*) Priscila Frehse é psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), Mestra em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Membra do Grupo de Estudos, Pesquisas e Escritas Feministas (Gepef) e do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi (GBPSF).
INFORMAÇÕES SOBRE O LIVRO:
Título: Engordei o sol noturno
ISBN: 978-65-5900-203-0
Idioma: português
Encadernação: brochura
Formato: 14×19,5cm
Páginas: 124 páginas
Papel:polén gold 90g
Ano de edição: 2022
Edição: 2ª
Editora: Urutau
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