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Resenha da obra ‘Engordei o sol noturno’, de Rebecca Loise, por Laura Redfern Navarro

A dualidade no desejo em Engordei o sol noturno, de Rebecca Loise

Por Laura Redfern Navarro (*)

Publicado em 2022 pela Editora Urutau, Engordei o sol noturno é o livro de estreia da escritora, psicanalista e artista do corpo sul-mato-grossense Rebecca Loise. Em uma construção que mistura poesia, prosa e dramaturgia, o livro encara as vicissitudes do desejo feminino – principalmente, aquele que aflora da solidão, do desamor e da impossibilidade – como matéria de criação poética.

É a partir das epígrafes, da escritora afro-estadunidense Maya Angelou (1928-2014) e da poeta gaúcha Mar Becker, respectivamente, que Loise começa a tatear a maneira como o desejo, enquanto paradoxo, irá tomar forma ao longo de Engordei o sol noturno:

“Assim como as luas e como os sóis
Com a certeza das marés
Assim como a esperança brotando
Ainda assim, vou me levantar”
Maya Angelou

“à noite estou sozinha

sonho com um cavalo azul
e o vento varre meu rosto e minha boca cai em desuso”

Mar Becker

Ambas as epígrafes, ainda que suscitem circunstâncias distintas – na de Maya Angelou, há uma voz externalizante e, na da poeta gaúcha Mar Becker, uma maior introspecção – trazem a corporeidade como central. No primeiro trecho, isto se observa pela construção imagética, que equipara elementos do mundo natural (as luas, os sóis, e as marés) ao corpo do eu-lírico (“Ainda assim, vou me levantar”), numa chave de enfrentamento e potência, destacando-se a ação.

Já no segundo, Becker não trabalha em torno de uma resiliência – ao menos, não uma resiliência ativa e confrontadora. Nos versos, há uma visceralidade do corpo, quase num movimento onírico de entrega de si para si próprio (“à noite estou sozinha”). Aqui, portanto, as imagens descritas refletem, na verdade, a interação do eu-lírico para com seu mundo interno – daí, se destaca o sonho com o cavalo azul, que evoca tanto uma ideia de movimento (pelo galopar) quanto de uma melancolia (pela cor azul), aspectos que encontram materialidade no corpo, como se vê no verso final:  “e o vento varre meu rosto e minha boca cai em desuso”.

Deste modo, observa-se uma dualidade – retomando-se o eixo desejo, na epígrafe de Angelou, ele se apresenta como um corpo que vinga, isto é, que se afirma e, ao mesmo tempo, enfrenta. Em Becker, essa corporeidade ganha contornos marcadamente fleumáticos e etéreos, colocando-se enquanto criador e receptáculo de imagens, devaneios e sensações. 

Assim, podemos entender que o livro se encaminhará por meio destas duas possibilidades em torno do desejo. Isso fica evidente já no texto que inicia o livro, “Cena I”, que integra a seção “o gozo da solidão”:

Escrever demora. Como registrar um relâmpago mortífero que é o meu pensamento? Escrever é lento, e eu penso na velocidade de uma raposa solitária em uma floresta absoluta, do tipo Amazônica. Corro, corro, corro louca, me arranho nos galhos, tropeço na pedra enfiada firme na terra, me afogo no rio, sou engolida pela pressa que invento na escuridão da floresta absoluta que parece braços de homem. É difícil fazer morar a palavra na boca. A língua pode ser um monstro. E no papel a palavra corta um tempo. Estou recuando diante da tarefa de reter a descarga elétrica do pensar. Assim me amaldiçoo, sofro indiscriminadamente e sem julgamento, podendo negar e afirmar sempre qualquer coisa e depois discordar de tudo o que pensei e disse e desdizer o que pensei e pensar que não disse nunca” (p. 15)

Neste poema em prosa, Loise tece, de maneira precisa, a ambivalência entre ação (como na epígrafe de Angelou) e imaginação (como na epígrafe de Becker) a partir do ato de escrever, que é marcado por uma instabilidade (“Escrever é lento, e eu penso na velocidade de uma raposa solitária em uma floresta absoluta, do tipo Amazônica”). Neste sentido, pode-se dizer que “Cena I” trabalha em cima daquilo que antecede, ou melhor, o que desemboca na escrita antes dela materializar-se de fato, concebendo uma espécie de “filtro” entre o pensamento e o real (“É difícil fazer morar a palavra na boca. A língua pode ser um monstro. E no papel a palavra corta um tempo”).

Portanto, observa-se uma perspectiva sobre a linguagem enquanto descontrole em função das velocidades distintas dos processos de pensar e escrever, como se vê em “Escrever demora. Como registrar um relâmpago mortífero que é o meu pensamento?”. Desta maneira, o cerne do poema se dá na chave da “escolha”, esta que acontece de maneira inconsciente, o que gera angústia ao eu-lírico, que busca um controle total sobre seus processos; e, ao mesmo tempo, um alívio sobre o fato de a escrita – ou a ficção – não estar necessariamente comprometida com o mundo material. Este paradoxo ganha corpo nos trechos finais: “Estou recuando diante da tarefa de reter a descarga elétrica do pensar. Assim me amaldiçoo, sofro indiscriminadamente e sem julgamento, podendo negar e afirmar sempre qualquer coisa e depois discordar de tudo o que pensei e disse e desdizer o que pensei e pensar que não disse nunca”. 

Mais para frente, a dualidade que a poética de Loise enseja vai adquirindo corporeidade, com um eu-lírico assumidamente feminino, que explora o desejo por meio do erótico. Assim, há uma maior naturalidade desse eu-lírico em relação a si e ao mundo, desmanchando-se, pouco a pouco, sua necessidade por controle. Isso se vê no poema que dá título ao livro, “engordei o sol noturno”:

“Às vezes eu ando meio noite
De tempos em ventos
ando meio dia
até quando o relógio
grita: – É meia-noite!

Dei de comer e beber
ao sol noturno
Assim como Cecília
deu de comer
aos pássaros
e deu de beber
à terra

A palavra tem
mais fome
e mais sede
do que alguém
que vive em carne
identidade e osso

Dei de comer
palavras para não
morrer feito gente
que morre sem alma

A íntima idade do tempo
eu alimento quanto mais
palavras eu como
Nem meia noite nem meio-dia
às vezes ando meio sem chão
e caio de boca numa poesia”(p . 45)

Aqui, observamos um repertório imagético e sensorial voltados, principalmente, à fome e à sede (“Dei de comer e beber / ao sol noturno”), sem desvencilhar-se da investigação sobre a linguagem e à escrita (“A palavra tem / mais fome / e mais sede / do que alguém / que vive em carne / identidade e osso”). Logo, há um jogo semântico que arremata referências às necessidades vitais do homem às referências à linguagem, colocando a escrita também como algo essencial à vida do eu-lírico: “para não / morrer feito gente / que morre sem alma”. 

Desta forma, ao debruçar-se novamente sobre o reboliço interno da linguagem sobre quem escreve, Loise avança o que foi postulado em “Cena I” ao suscitar um maior movimento de entrega, evocando uma atmosfera simbólica. Nessa tessitura, o eu-lírico já não se vê mais na posição de controlar o próprio processo (“Nem meia noite nem meio-dia / às vezes ando meio sem chão / e caio de boca numa poesia”), mas de vivenciá-lo em sua intensidade e essência.

Em relação às epígrafes, “engordei o sol noturno” destaca-se por abranger elementos dos dois trechos. A retomada dos astros, como o sol e a lua, bem como um direcionamento relacional a estes (“Dei de comer e beber / ao sol noturno”) se associa à proposta de Angelou; ao mesmo tempo, a atmosfera simbólica, onírica e noturna do poema também é a tessitura dos versos de Becker.

Assim, a investigação de Loise pelo desejo toma forma a partir da escrita, que concebe sua visceralidade também pelo caráter experimental de seus textos. Em seu posfácio para o livro, a poeta carioca Rita Isadora Pessoa observa: “Observamos o uso de recursos e procedimentos criativos que tomam a virtualidade e as mídias tanto como temática como forma, tais como rascunhos de e-mails não enviados, descrição de stories do Instagram, de maneira a integrar o livro com hibridismo e brincar com a fluidez dos gêneros textuais”(p. 115-116). No poema “ser escritora no sexo XXI”, este aspecto particularmente se destaca:

Quando clico [Iniciar]
depois em [Microsoft Office Word]
e, por fim, em [Abrir nova página]
me sinto [[Like a Virgin]]

Tocada e tremendo
como se fosse a primeira vez
Bate o vazio criativo
no Era Uma Vez do intestino


Escrever é fazer amor
com as palavras
na cama da camada
profunda e interna do corpo

Encontro o lugar
onde o rebelde vulcão
esconde as belas lágrimas
Pinto a ponta dos dedos com as lavas!

Escrita explodida
Deixo os arranhões
no silêncio das estrofes
Clico [Salvar] e saio com vida” (p. 63)

Em “ser escritora no sexo XXI”, nota-se uma inteligente brincadeira com o título, que subverte “sexo” no lugar de “século”, trazendo uma demarcação de gênero para o poema. Além disso, como apontou Pessoa, Loise, aqui, concebe uma tessitura que brinca com a linguagem tecnológica, sem abandonar a originalidade de seu lirismo, mas reforçando a proposta do texto, isto é, a construção o poema enquanto processo. Logo, as demarcações associadas ao computador – “[Iniciar]”, “[Microsoft Office Word]”, “[Salvar]”, dentre outros – aparecem somente na primeira e na última estrofe do poema. 

Nas partes mais líricas, percebe-se a forte corporeidade das imagens, que evocam uma atmosfera passional e íntima (“Escrever é fazer amor”) quanto uma linguagem que atravessa discussões coletivas e políticas, principalmente no que diz respeito ao ser mulher. Vale notar, por exemplo, a referência à “Like a Virgin”, de Madonna, ainda na primeira estrofe, captando uma imagem temporal reconhecível à geração de Loise. Esta referência também compõe a efusividade e a ansiedade que “ser escritora no sexo XXI” retrata, abrangendo tanto o processo pessoal da escrita de um texto, quanto o lugar social de quem o escreve.

Esta centralização à figura da mulher também se associa à dualidade sobre o desejo que Loise busca construir ao longo de Engordei o sol noturno. “Ser escritora no sexo XXI” suscita a transformação interna do eu-lírico conforme ele escreve. Inicialmente hesitante (“Tocada e tremendo”), sua escrita se torna gozosa (“Escrever é fazer amor”) e, depois, novamente, se vê hesitante (“Clico [Salvar] e saio com vida”). 

Deste modo, o poema traz a sacada da contraposição entre ação e imaginação a partir do medo da escrita. Como se vê em “Cena I”, esse medo não é algo novo aos poemas de Loise, mas se encerra – seja pela postura controladora, seja pela “vontade de tirar da frente” – como instância de um desejo fronteiriço, que se coloca no meio da contradição colocada pelas epígrafes de Maya Angelou e Mar Becker.

Este medo, porém, não se limita à esfera pessoal da autora ou do eu-lírico, mas se vê enquanto realidade de muitas mulheres escritoras na atualidade, as quais se enxergam como impostoras, incapazes ou invisíveis. Se encontrando num contexto ainda dominado pela presença masculina, a escrita de Loise – de forma mais incisiva em “Ser escritora no sexo XXI” – também arremata uma leitura social, coletiva e crítica dessa dualidade conflitante sobre o desejo. 

Por fim, partindo do percurso que Engordei o sol noturno elabora em meio às epígrafes, podemos entender que escrita é desejo, e desejo é voracidade. Logo, o medo da escritora, aqui, é de devorar – e de ser devorada – sem parcimônia. Talvez, de que, ao tomar o gozo para si, ela perca o controle; ou conheça uma versão indomada de si. Para Loise, portanto, uma mulher que escreve é uma mulher que deseja, ou seja, que se vê no conflito.

(*) Laura Redfern Navarro (2000)é aquariana, poeta e jornalista graduada pela Faculdade Cásper Líbero. Desde 2019, produz conteúdo sobre literatura e criatividade na plataforma @matryoshkabooks. Pesquisa corpo e linguagem nas vicissitudes do feminino. Foi aluna do Curso Livre de Preparação do Escritor (CLIPE – Poesia) em 2021 pela Casa das Rosas. Participa da equipe de poetas do portal Fazia Poesia. Em 2022, venceu, em primeiro lugar, o Edital de Publicação Inédita em Poesia do ProAC com O Corpo de Laura.

Resenha da obra 'Engordei o sol noturno', de Rebecca Loise, por Laura Redfern Navarro

INFORMAÇÕES SOBRE O LIVRO:

Título: Engordei o sol noturno

ISBN: 978-65-5900-203-0

Idioma: português

Encadernação: brochura

Formato: 14×19,5cm

Páginas: 124 páginas

Papel:polén gold 90g

Ano de edição: 2022

Edição: 2ª

Editora: Urutau

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