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Desde 1968 - Ano 56

InícioColunista'Sem lugar', por Julio Pompeu

‘Sem lugar’, por Julio Pompeu

Julio Pompeu (*) –

A infância de Marco foi boa. Morava num lugar pobre, mas de pobreza não sentida para quem, na sua idade, dispunha de comida e do carinho dos pais. Brincava na rua com o que tinha e aquilo lhe bastava. Os conflitos do lugar passavam longe de suas preocupações com pipas, bolas de gude e bala de coco.

Seu irmão, mais velho, sentiu as dificuldades do lugar primeiro. O tráfico já o olhava como mais um para morrer na defesa da boca de fumo. Seu pai, atento como era, percebeu e não gostou. Foi falar com os garotos traficantes. Tomou um tiro no peito. Foi o fim de sua infância e alegria.

Sua mãe saiu de lá às pressas. Precisava salvar os dois filhos. Aquele lugar em que os filhos nasceram não era mais um lugar para se viver. Foram para outra cidade, longe dali. Mais feia. Mais fria. Violenta do mesmo jeito. Precisou trabalhar.

Nunca sentiu que aquele lugar fosse seu. Não tinha lembranças de tempos felizes vividos no lugar da nova vida. O trabalho o fez conhecer lugares onde se sentia ainda mais desencaixado. Levava e trazia bandejas com pratos sujos retirados das mesas de um restaurante onde todo mundo que comia lá tinha uma cor diferente da sua. Às vezes, lhe parecia gente de outro planeta. Com outros jeitos e trejeitos de comer, falar, andar, olhar. Os olhos claros daquela gente pareciam mirar, mas não o ver. Deixavam claro a cada palavra, tom, gesto ou olhar, que seu lugar não era e nunca seria aquele.

Aprendeu a viver e manter o emprego por lá. “O segredo de se viver em lugar que não é seu, em um não lugar para você, é não ser nada lá. Não ser visto, ouvido… é só existir por lá sem deixar perceberem que você existe. Eles não me querem por lá. Eu também não queria estar lá. Eles fingem que eu não existo. Eu também finjo que não existo. Enquanto estivermos assim, está tudo bem”, disse Marco a um deslocado mais novo que ele naquele lugar.

Sua mãe, doente, procurou um médico. Seu caso seria para especialista, que poderia lhe atender “daqui a um ano”. Morreu seis meses depois, sem diagnóstico. Seu irmão resolveu ganhar a vida em outro lugar. Marco se viu sozinho naquela cidade que sentia não ser sua. A indiferença de todo o sistema na doença de sua mãe lhe deu a sensação do país também não ser seu.

Um colega de restaurante lhe deu a ideia. “Vou sair do país.”. Marco gostou da ideia. Foi junto. Foi parar na Irlanda, para trabalhar duro, como fazia no Brasil, para ser olhado de viés, como no Brasil, para não se sentir de lá, como no Brasil, só que ganhando um dinheiro que vale mais que o do Brasil, na esperança de um dia voltar e comprar um lugar que pudesse ser seu.

Não deu certo. Apanhou na rua e não quis mais ficar por lá. Socos de irlandeses e a indiferença das autoridades de lá eram ainda piores que os olhares e desprezos de cá. Resolveu ir para outro não lugar.

Escolheu os EUA porque lá também tinha muitos brasileiros. Também tinha dinheiro que valia mais do que o de cá. Não gostavam muito de gente de fora também. Mas, pelo menos, a coisa não parecia tão violenta quanto na Irlanda.

Ajustou-se como pôde. Com ajuda de gente de lá e de cá que morava lá há tempo suficiente para aprender e ensinar a sobreviver. Era como no Brasil. Existir como se não existisse. Ser olhado sem ser visto. Não parecia difícil.

Trabalha, esconde-se, sobrevive e junta dinheiro por lá. Dorme na espera do dia em que vão lhe prender e mandar embora de lá. Expulsá-lo do lugar que não é seu. Antes de dormir, pensa no que vai responder quando lhe perguntarem de onde ele é. “Sou de lugar nenhum”.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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