Marina Amaral – Diretora Executiva da Agência Pública [email protected] –
“Golpe de Estado mata. Não importa se isto é no dia, no mês seguinte ou alguns anos depois”, disse o ministro Flávio Dino ao votar pelo acolhimento da denúncia contra Jair Bolsonaro e sete de seus aliados, fazendo referência em seguida ao filme Ainda estou aqui, baseado no livro de Marcelo Paiva sobre a luta por justiça de sua mãe, Eunice, após o assassinato e desaparecimento do corpo do marido, o ex-deputado Rubens Paiva. A fala de Dino foi lembrada no voto da ministra Cármen Lúcia, que completou: “Ditadura vive da morte. Não apenas da sociedade, não apenas da democracia, mas de seres humanos, de carne e osso, que são torturados, mutilados, assassinados, toda vez que contrariam o interesse daquele que detém o poder para o seu próprio interesse. Não é para o bem público, não é para o benefício de todos”. As referências aos crimes da ditadura foram ainda mais impactantes porque foram acompanhadas de perto por Ivo, filho de Vladimir Herzog – morto sob tortura em dependências militares, como Rubens Paiva –, e Hildegard Angel, filha da estilista Zuzu Angel, que morreu em um acidente suspeito quando investigava a morte do filho de 25 anos, desaparecido em 1971. Ivo e Hildegard estavam com outros parentes de vítimas da ditadura, próximos ao ex-presidente Jair Bolsonaro, o que criou um “clima de tensão”, como conta a repórter Alice Maciel no Ato 1 do Diário do Julgamento, cobertura especial da Agência Pública que vai acompanhar o julgamento histórico dos réus por golpe de Estado e outros delitos. |
“ A possibilidade inédita de punir um presidente e quatro militares de alta patente que atentaram contra a democracia em um país com a história marcada pela brutalidade da ditadura instaurada em 1964 e que se estendeu por mais de 30 anos, com total impunidade dos responsáveis pelos crimes hediondos citados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). |
Hediondos e imprescritíveis no caso de tortura, segundo o Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional, e foi ratificado e incorporado à legislação brasileira em 2002. Crime permanente e continuado, no caso do desaparecimento dos corpos, embora ambos os crimes estejam até hoje impunes sob o manto da Lei da Anistia de 1979, lamentavelmente confirmada em 2010 pela Suprema Corte. A fala dos ministros tem especial relevância em um momento em que justamente essa lei está sendo revisada no STF. Daí a atenção redobrada para o voto do ministro Flávio Dino, que é relator do processo, de repercussão geral, que vai determinar se a Lei de Anistia alcança os crimes de ocultação de cadáver. O caso concreto a ser julgado, que pode alterar os efeitos da lei de 1979, é o dos tenentes-coronéis Sebastião Curió e Lício Maciel, acusados de ocultar os corpos de guerrilheiros mortos no Araguaia entre 1974 e 1976. Ambos foram absolvidos em tribunais inferiores com base na Lei da Anistia. Além de lembrar os crimes da ditadura, o voto de Dino também chamou a atenção por ter citado “milhares” de vítimas – e não apenas os 434 mortos e desaparecidos políticos reconhecidos oficialmente – levando em conta as estatísticas reais, reivindicadas por especialistas e ativistas de direitos humanos. Vamos lembrar que a Comissão da Verdade incorporou entre as vítimas da ditadura militar ao menos cerca de 8500 indígenas e mais de 1600 camponeses mortos e desaparecidos nesse período. Com isso, aumentou a esperança por justiça das famílias, dos movimentos sociais e de todos que compreendem o sofrimento daqueles que, como as famílias Paiva e Angel, arrastam por anos a angústia de sequer poder enterrar seus filhos, irmãos, companheiros e amigos. É um momento único para a democracia brasileira este que reúne o julgamento dos golpistas de hoje com a revisão – ao menos parcial – da malfadada lei de 1979. O que torna ainda mais patéticos os esforços dos aliados de Bolsonaro no Congresso para anistiar os que atentaram com violência contra o Estado Democrático de Direito no século 21. No próximo dia 3 de abril, dois dias depois do triste – e esperamos, silencioso – aniversário do golpe de 1964, um outro julgamento no STF promete dar a medida em que a democracia de fato está instalada no país. Trata-se da decisão sobre a ADPF das Favelas, que discute a letalidade policial em comunidades no Rio de Janeiro. Se o STF, que promete uma decisão unânime, determinar a manutenção das restrições às operações policiais nas comunidades, que não ocorrem nos bairros abastados, é sinal de que temos uma Justiça que reconhece a igualdade de direitos da população e a necessidade de proteger aqueles que têm sido as maiores vítimas do Estado depois da redemocratização: os moradores de morros e periferias, que além de enfrentarem o jugo de milícias e facções, são os alvos preferenciais da violência policial. Se cederem às falácias do governador do estado, Cláudio Castro, e do prefeito Eduardo Paes, sobre os efeitos da medida e às mentiras da direita linha dura – aquela cujos expoentes extremos participaram da trama golpista de Bolsonaro – então o nosso problema é ainda maior. Quando a democracia não vale para todos, não vale para ninguém. PS. Na próxima quarta-feira dia 2 de abril às 19h30 terei o grande prazer de receber a psicóloga Vera Paiva, filha de Rubens Paiva, para uma live no YouTube da Agência Pública. Uma conversa imperdível sobre os 61 anos do golpe. Ative o lembrete e participe! |