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Urbanismo Social como Antídoto: Lições de Medellín para Combater a Criminalidade em Dourados

Mário Cezar Tompes da Silva (*) –

A violência e a insegurança são um tormento que afeta uma parte considerável das cidades brasileiras. No início era um fenômeno localizado em algumas grandes metrópoles. Em nossos dias, no entanto, ganha gana de onipresença e se manifesta também em muitas cidades de porte médio e mesmo em várias de pequeno porte. Dourados, como parte desse mesmo contexto, tem testemunhado episódios recorrentes de insegurança urbana. Ainda que concentradas nas bordas periféricas da cidade, as atividades criminosas frequentemente transbordam e vitimam moradores de áreas mais privilegiadas.

Recentemente o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgaram o Atlas da Violência 2024. O estudo apresenta os municípios brasileiros com maior número de homicídios por 100 mil habitantes.  Os municípios são divididos em três categorias: até 100 mil habitantes, entre 100 e 500 mil e acima de 500 mil habitantes. Dourados, enquadrado na segunda categoria que reúne 319 municípios, ocupa nela a posição 119a entre as cidades com maior índice de homicídio. Em boa medida essa classificação se deve ao fato do município situar-se próximo à fronteira do Paraguai e sofrer o rescaldo do conflito entre as facções de traficantes dessa região, especialmente o PCC – Primeiro Comando da Capital e o CV – Comando Vermelho.

Ainda, segundo o estudo, a média do Brasil é de 24,5 homicídios por 100 mil habitantes. Já Dourados situa-se, desconfortavelmente, acima da média nacional, atingindo 28,4 homicídios por 100 mil habitantes. Como já afirmei, a maior parte desses crimes ocorre na periferia da cidade, área com grande carência de serviços públicos, equipamentos urbanos e empregos.

A partir dessa realidade, a questão que gostaria de explorar aqui é se o urbanismo (planejamento urbano) teria algum papel a desempenhar diante desse desafio da violência urbana. Uma boa maneira de responder a esse questionamento é compararmos as soluções urbanísticas que são adotadas aqui com as de outras cidades que enfrentam o mesmo desafio. Nesse sentido o caso da cidade colombiana de Medellin é bastante didático.

No início dos anos 90 Medellin era uma espécie de sucursal colombiana do inferno. A cidade era o campo de batalha sangrento onde os carteis de Cali e de Medellin disputavam o controle do tráfico de cocaína. A cidade enfrentou um grau inédito de violência e o índice de assassinatos alcançou estratosféricos 382 homicídios por 100 mil habitantes. Medellin foi considerada a cidade mais violenta do mundo. Na sua periferia manifestavam-se simultaneamente a pobreza e as atrocidades. Seus moradores conviviam em grau extremo com o isolamento, a violência e a ausência de serviços públicos elementares.

No entanto, hoje, em uma reviravolta surpreendente, Medellin tornou-se referência mundial por seu sucesso, não apenas na melhoria da segurança pública, mas, especialmente, no aumento da coesão social de sua comunidade. Após a desarticulação dos cartéis do narcotráfico, o prefeito Sergio Fajardo (2004-2007) adotou um modelo de planejar a cidade que se tornou conhecido como urbanismo social. A melhor forma de definir esse modelo são as palavras de Jorge Melguizo (ex-secretário de cultura cidadã de Medellin): “Durante muito tempo nós dissemos que precisávamos de projetos físicos, urbanos, que dessem resultados sociais. Aquilo que realmente queríamos soava parecido com isso, mas era na verdade uma inversão: um projeto de transformação social, educativa e cultural que desse resultados urbanos”.

A cidade passou a promover a convivência entre as diferentes classes sociais, aumentando a coesão entre os distintos segmentos da comunidade. Como explica Melguizo, o oposto da violência é a convivência. Hoje, em Medellin, é possível circular pelas diversas áreas da cidade, mesmo nas favelas, com tranquilidade, sem receio, usufruindo de segurança.

Um compromisso foi estabelecido na largada: levar o melhor para os mais pobres. A estratégia adotada baseou-se nos PUI – Projetos Urbanos Integrais. Trata-se de superar uma dificuldade recorrente em todas as administrações municipais onde cada secretaria foca em suas próprias prioridades. No lugar de projetos específicos de cada secretaria, a prefeitura definiu grandes projetos estruturantes nas principais áreas carentes da cidade que passaram a ser projetos comuns de todas as secretarias. Mais importante, a definição e a implementação dos projetos contaram com a participação permanente das comunidades alvos.

Os projetos implantados destacaram-se pela alta qualidade de sua arquitetura. Antes em Medellin os prédios de destaque eram sedes de grandes empresas privadas, palácios ou igrejas. O fato de que hoje as edificações mais belas e imponentes da cidade se localizem nas favelas mais pobres é motivo de autêntico espanto, sobretudo para quem está habituado com os prédios públicos de nossas periferias, sempre acanhados, deteriorados e feios.

Entre os principais projetos implantados sobressaem-se as bibliotecas parques. Embora seja uma biblioteca, não é somente isso. Trata-se de uma estrutura que oferece um amplo leque de serviços para a comunidade, com auditório e espaços diversos onde ocorrem cursos de música, aulas de dança, treinamento em empreendedorismo, reuniões da comunidade, apresentações teatrais, concertos etc. Talvez a mais conhecida seja o Parque Biblioteca Espanha. O empreendimento consiste em três prédios monumentais fincados nas encostas da favela Santo Domingos. Ao todo foram construídas nove bibliotecas parques em diferentes favelas de Medellin, todas com projetos arquitetônicos excepcionais.

Apesar de impactar decisivamente a vida e, pela primeira vez, elevar a autoestima das comunidades beneficiadas, as bibliotecas parques foram apenas uma ação entre muitas outras intervenções nas periferias. Várias se seguiram: O Programa Buen Comienzo que criou 34 jardins infantis para acompanhar o desenvolvimento integral das crianças durante os cinco primeiros anos de vida e assistir suas famílias ao longo desse período. A implantação de parques em várias favelas. A execução de 21 UVAs – Unidades de Vida Articulada que criou espaços de lazer e convivência em torno de grandes infraestruturas públicas, como caixas d’água. O Centro de Desenvolvimento Cultural de Morávia construído em cima de um antigo lixão em um dos bairros mais pobres de Medellin. O MOVA – Centro de Inovações para Professores. O Centro da Quarta Revolução Industrial, implantado onde anteriormente era uma prisão para mulheres etc.

O objetivo de todas essas intervenções era integrar as populações carentes da periferia aos serviços públicos, à infraestrutura, ao emprego, à educação e à cultura. Ou seja, integrá-los à cidade, aos seus benefícios e as suas oportunidades. Porém, para tornar isso real faltava ainda garantir a mobilidade para que os moradores das periferias distantes acessassem facilmente a cidade.

Uma ação crucial foi enfrentar os problemas de deslocamento dos moradores das favelas. Em Medellin, elas se situam nas encostas íngremes de morros que dificultam a circulação das pessoas. A solução adotada foi a implantação de escadas rolantes e teleféricos (metrocables) que sobem até o topo dos morros e cujas estações se integram com o metrô ou o VLT (ônibus de pistas exclusivas), permitindo um deslocamento rápido e confortável para os moradores. Igualmente importante foi a adoção de um cartão que permitiu a utilização integrada de todos os modais, pagando um preço muito reduzido. A implantação de uma rede de ciclovias e a disponibilização de bicicletas públicas diversificou as opções de deslocamento. Resumindo, o melhor transporte público hoje em Medellin está nas favelas e nas periferias.

Esse modelo de planejar a cidade, tendo por finalidade integrar os mais pobres à sociedade, resultou em uma consistente queda da criminalidade. A partir de 2020, a taxa de homicídios foi reduzida para 13,9 por 100 mil habitantes. Apenas recordando, era de 382 por 100 mil nos anos 90. Esse resultado extraordinário, claro, não se deve apenas ao urbanismo social, houve empenho em investir também nas forças de segurança. Mas os investimentos nas forças policiais não ultrapassaram 10% a 15% do total. 85% a 90% do investido concentrou-se nos projetos sociais/urbanísticos.

Os moradores deixaram de cometer crimes não apenas por medo da polícia e de serem punidos, mas porque passaram a desfrutar de novas oportunidades de ascenderem socialmente. Não havia apenas a porta para o tráfico como única saída para acessar o que almejavam, outras portas foram abertas: a educação, oportunidades de empregos, cultura e saúde. Isso pode fazer a diferença e em Medellin fez muita diferença para os mais pobres. E como um bônus especial gerou mais segurança para todos da cidade.

Retornemos à Dourados. Qual a receita urbanística que nossa cidade adota na atualidade para se contrapor à insegurança urbana? Em boa medida a receita baseia-se na multiplicação dos condomínios fechados. A aposta é em bairros rodeados por muralhas de três metros de altura. Pode ser uma solução no curto prazo, mas se constituirá em uma fonte de infortúnios no longo prazo. O problema dos condomínios fechados é que eles combatem os efeitos da insegurança urbana, não os motivos que geram a insegurança urbana.

A longo prazo, a estratégia de Medellin favorece mais proximidade e convivência entre as diferentes classes sociais, maior integração entre todos os bairros, resultando em uma comunidade com mais coesão social. Por outro lado, bairros fechados por muralhas induzem ao isolamento, à segregação e, certamente, a uma baixa coesão social. Com a debilidade desta última, a percepção de que todos pertencemos a uma mesma comunidade onde, em alguma medida, nos apoiamos mutuamente e buscamos objetivos comuns vai perdendo sentido.

Por outro lado, contrariando o senso comum, condomínios fechados também geram insegurança. Eles tendem a produzir ruas mortas em seu entorno, espaços desertos e pouco seguros para as pessoas circularem. Embora surpreenda alguns, essa é uma situação real.  Em Dourados, a percepção desse problema é dificultada em função de que a imagem de rua de condomínio que temos é a Av. Dom Redovino. Uma via que além dos condomínios, também reúne comércio, serviços e galerias de loja. Tudo isso emoldurado por um magnífico paisagismo que confere a essa avenida um efeito cênico que impressiona quem por lá circula. Como resultado, essa via é um espaço vivo, com a presença constante de pessoas circulando e trânsito permanente de automóveis.

Essa avenida, no entanto, não é a regra, antes é uma exceção. As ruas características de condomínio, as quais os douradenses conhecem menos, são as vias situadas nos fundos e nas laterais desses empreendimentos murados. Essas ruas não dispõem de lojas, serviços ou residências que atraiam pessoas e movimento. São o que os urbanistas denominam de ruas cegas (os paredões impedem a visão de dentro para fora e de fora para dentro. Em uma situação emergencial na rua, não há como moradores prestarem socorro).  São espaços desolados, um deserto de gente, de ciclistas, de carros de tudo. Ao longo delas, só existem as muralhas. Caminhar por elas a qualquer hora do dia é algo bem pouco agradável. A sensação de insegurança, sobretudo a noite, é palpável.

Dourados, cidade de porte médio, comportaria uma dúzia de condomínios fechados, até mesmo duas dezenas deles. Os efeitos deletérios seriam pulverizados no tecido urbano mais amplo. Seria administrável.  No entanto, atualmente, é como se o mercado imobiliário tivesse sido vítima de uma epidemia que dissemina esses bairros murados por todos os quadrantes da cidade. Boa parte dos empreendimentos lançados em nossos dias, não importa para qual público alvo (alta renda, classe média, Minha Casa, Minha Vida) são fechados com muralhas. Como resultado previsível, as novas vias a serem implantadas na cidade deixarão, cada vez mais, de apresentar o formato de ruas tradicionais guarnecidas por casas, comércio e serviços, com gente, movimento e vida e assumirão a aparência de espaços mortos, vazios e inseguros.

Há maneiras, via legislação urbanística, de amenizar os efeitos nocivos dessas ruas emparedadas, desertas e desoladas, mas, até a presente data, a administração pública local não tomou iniciativas nessa direção. Portanto, esse padrão de rua aparenta possuir um futuro muito promissor em Dourados.

Por fim, a resposta à questão colocada no início desse texto é sim! O urbanismo tem um papel a desempenhar no combate à violência. Porém, de acordo com o modelo adotado os resultados poderão ser muito diversos. E ao confrontarmos Dourados e Medellin, nova questão emerge: A longo prazo, qual a estratégia mais eficaz para garantir a segurança nos centros urbanos? Tentar integrar todos os moradores aos benefícios oferecidos pela cidade ou isolar e proteger alguns poucos atrás de grandes muros? Os resultados consistentes sobre a redução da criminalidade em Medellin fala de forma muito eloquente acerca da assertividade de sua estratégia. Corroborado pelos fatos, o urbanismo social revelou-se um antídoto eficaz para aniquilar os efeitos tóxicos do crime e da violência que, desafortunadamente, ainda infelicitam a vida de muitas cidades contemporâneas.

 (*) Professor de Planejamento Urbano.   E-mail: [email protected]

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